18 Mai 2020 15:33
Gigante do cinema francês, figura emblemática do cinema europeu, Michel Piccoli faleceu no dia 18 de maio de 2020, vítima de um acidente vascular cerebral — contava 94 anos.
Na sua filmografia de mais de duas centenas de títulos, encontramos colaborações com cineastas de todos os quadrantes e sensibilidades, de Jean-Luc Godard a Nanni Moretti, passando por Luis Buñuel, Alfred Hitchcock ou Manoel de Oliveira — a sua versatilidade fez dele um exemplar retratista de todas as nuances, da ternura à violência, da identidade humana.
Não haverá muitos actores, europeus ou de outras geografias, cujo trabalho nos permita conhecer e compreender as transformações por que passou o cinema ao longo de sete décadas. Isto porque, de facto, Piccoli começou a sua carreira no interior da produção clássica dos anos 40/50, foi figura de destaque na época gloriosa da Nova Vaga e, depois, soube construir uma carreira em que se cruzam os títulos de narrativas tradicionais com os exercícios mais experimentais.
De um conjunto tão vasto de interprtetações, eis uma dezena que pode ajudar a definir os fascinantes contrastes do labor de Piccoli:
* FRENCH CAN CAN (1955), de Jean Renoir — É verdade, Piccoli ainda trabalhou sob a direcção do mestre Renoir, ao lado de Jean Gabin e Françoise Arnoul, neste filme que é também um exemplo raro de felicidade criativa.
* O DESPREZO (1963), de Jean-Luc Godard — Símbolo modelar das convulsões da Nova Vaga, neste retrato dos bastidores de uma produção cinematográfica na ilha de Capri estão também Brigitte Bardot, Jack Palance e Fritz Lang (… no papel de Fritz Lang).
* AS DONZELAS DE ROCHEFORT (1967), de Jacques Demy — Aliança perfeita de música & drama (melodrama), maravilhosa concretização do cinema "em-cantado" de Demy, com os papéis principais entregues às irmãs Catherine Deneuve/François Dorléac.
* BELLE DE JOUR (1967), de Luis Buñuel — Fábula moral, cristalina e perversa, é uma das várias colaborações de Piccoli com Buñuel; nele encontramos de novo Deneuve, talvez no papel mais emblemático de toda a sua carreira.
* TOPÁZIO (1969), de Alfred Hitchcock — Título tantas vezes esquecido do mestre do "suspense", nele encontramos uma das expressões mais radicais do seu cepticismo face às convulsões dos bastidores da política internacional.
* AS COISAS DA VIDA (1970), de Claude Sautet — Grande sucesso popular (inclusive em Portugal), esta história dramática de um casal ilustra a permanência de uma tradição romanesca, tipicamente francesa — com Romy Schneider.
* A GRANDE FARRA (1973), de Marco Ferreri — Fábula cruel sobre o misto de crueldade e vulnerabilidade dos humanos — com Marcello Mastroianni, Ugo Tognazzi, Philippe Noiret e Andréa Ferréol.
* MÁ RAÇA (1986), de Leos Carax — Exemplo modelar de um cinema pós-moderno, pós-Nova Vaga, em que todas as experimentações narrativas são possíveis — com Juliette Binoche.
* A BELA IMPERTINENTE (1991), de Jacques Rivette — Por certo um dos filmes mais geniais que já se fizeram sobre a pintura e, mais especificamente, a relação de um pintor (homem) com o seu modelo (mulher) — com Emmanuelle Béart.
* PARTY (1996), de Manoel de Oliveira — Um dos filmes de Oliveira em que o melodrama mais, e melhor, se cruza com o burlesco; Piccoli contracena, entre outros, com Irene Papas e Leonor Silveira.
Piccoli foi várias vezes dirigido por Oliveira, nomeadamente em "Vou para Casa" (2001), seguramente um dos filmes mais pessoais do realizador português, centrado na personagem de um actor que, na sequência da morte dos seus familiares mais próximos, decide abandonar o seu trabalho.
Vimo-lo também, por exemplo, em "Rencontre Unique" (2007) — curta metragem que integrava "Cada um o seu Cinema" (2007), obra comemorativa dos 60 anos do Festival de Cannes — em que Oliveira encenava o encontro bizarro de Nikita Krouchtchev com o Papa João XXIII; os seus intérpretes eram, respectivamente, Piccoli e João Bénard da Costa.
Importa lembrar que o rigor e a pluralidade dos registos de representação de Piccoli não podem ser dissociados da sua experiência teatral que, em boa verdade, manteve sempre em paralelo com a actividade no cinema. Pirandello, Strindberg e Shakespeare são apenas alguns dos autores cujos textos defendeu em palco.
Em 2006, por exemplo, no Théâtre de l’Odéon, em Paris, representou "O Rei Lear", sob a direcção de André Engel — a esse propósito, eis uma entrevista na televisão francesa, proveniente do arquivo do INA. É uma conversa breve, mas de tocante eloquência, em que Piccoli diz que, quando representa, se sente "um pouco como um peixe na água".
Para lá de Oliveira, o trabalho de Piccoli manteve diversas relações com o contexto cinematográfico português, em particular através das três longas-metragens que dirigiu — "E Então" (1997), "La Plage Noire" (2001) e "C’est Pas Tout à Fait la Vie Dont J’Avais Rêvé" (2005) —, todas elas produzidas por Paulo Branco.
Nos últimos anos, embora com maiores intervalos entre os filmes em que ia participando, Piccoli surgiu, por exemplo, em "Habemus Papam – Temos Papa" (2011), de Nanni Moretti, comédia subtil sobre as relações de um Papa com o seu terapeuta, e "Vocês Ainda Não Viram Nada" (2012), de Alain Resnais, panfleto íntimo sobre as agruras e prazeres da criação artístca — este último, infelizmente, é uma das obras-primas do cinema do século XXI que permanece num limbo de desconhecimento quase geral.