O realizador José Miguel Ribeiro considera que a animação vive um momento de “crescimento exponencial” que Portugal não está a aproveitar, porque falta dar “o salto para essa dimensão de grande escala”, afirmou à agência Lusa.
“Temos o talento dos portugueses, temos o talento e o ‘know-how’ dos produtores e falta-nos uma coisa, que é muito pouco e se consegue rapidamente. (…) Só um país sem visão desperdiçaria este talento todo”, sublinhou o realizador, que na quinta-feira estreia nos cinemas o filme “Nayola”, a primeira longa-metragem de animação em mais de vinte anos de carreira.
Para José Miguel Ribeiro, realizador e produtor, “o salto para essa dimensão de grande escala” implicaria um maior envolvimento dos canais de televisão, do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) e “se calhar também do Ministério da Economia, por que não?”.
“Se o Ministério da Economia investe na indústria do calçado e dos têxteis, por que é que não investe na indústria da animação, que é nova?”, perguntou.
Os dados mais recentes do ICA indicam que em 2022 foram produzidos 23 filmes de animação, destacando-se, entre eles, três longas-metragens — “O natal do Bruno Aleixo”, “Nayola” e “Os demónios do meu avô” — que representam um número inédito nos 100 anos de história do cinema de animação em Portugal.
José Miguel Ribeiro, de 57 anos, que trabalha a partir de um estúdio de produção em Montemor-o-Novo e demorou quase uma década a produzir “Nayola”, lembra como a nomeação da curta-metragem “Ice Merchants”, de João Gonzalez, para os Óscares, deu visibilidade ao setor.
“Há uma diferença entre visibilidade e trabalho de fundo, de construção. E esse começou há muitos anos. A sociedade só vê a partir de determinada altura, até aí as coisas pareciam invisíveis. (A nomeação) tem muito significado, mas tem muita visibilidade. Se ela passar para as pessoas, para a sociedade e chegar aos políticos, nós podemos desejar que tenha alguma consequência. E a consequência é criar a possibilidade a todos os formados que saem das escolas… o trabalho que existe neste momento é muito instável, muito irregular”, opinou.
Para José Miguel Ribeiro, a produção de grande escala que deseja para Portugal passa pela criação de mais séries de animação, que possam ter difusão internacional em televisão e ‘streaming’.
“Essa produção de grande escala, com uma televisão a liderar, a comprometer-se, a fazer uma aposta com regularidade todos os anos, em projetos diferentes, com produtores diferentes, podemos criar um tecido de produção nacional com algum significado internacional e podemos exportar animação, que é o que se faz em França”, disse.
A criação de “Nayola”, que contou com um milhão de euros de apoio financeiro do ICA, foi possível por ter coprodução internacional com Bélgica, França e Países Baixos.
José Miguel Ribeiro, que lidera a produtora Praça Filmes, fez a estreia mundial de “Nayola” na primavera de 2022 no festival de Annecy (França), o mais relevante para o cinema de animação, e desde então já somou uma dezena de prémios.
“Nayola” tem argumento de Virgílio Almeida a partir de uma peça de teatro de José Eduardo Agualusa e Mia Couto, sobre a guerra civil em Angola, entre o passado e o presente, a partir da perspetiva de três gerações de mulheres da mesma família.
“O que me motivou foi essa dimensão da família na guerra, como é que as famílias sobrevivem à guerra. (…) O que achei interessante foi sair da minha posição de europeu, e português, e perceber como é que a guerra é noutro lado”, explicou.
Sobre “Nayola”, o realizador sublinhou ainda a vontade de sair da sua experiência pessoal na relação com a guerra e África.
Isto porque, antes de “Nayola”, José Miguel Ribeiro fez “Estilhaços”, uma ‘curta’ de animação sobre memórias da guerra colonial, inspirada na história do pai, combatente na Guiné-Bissau.
“Vi a guerra dentro da minha casa sem ter ido a um conflito armado. (…) A guerra não é só para quem a vive no espaço e no tempo. Há uma contaminação social gigantesca e isso foi uma aprendizagem. Não sabia. Passei a vida inteira a ver filmes de guerra e de ‘cowboys’ e achava que quando não acontecia era porque já não havia guerra. Essa dimensão da guerra é estrutural na minha formação e na minha vida”, afirmou.
Em “Nayola”, além da guerra, presente em toda a narrativa, há ainda a questão da afirmação das mulheres, e “a dimensão mágica, do maravilhoso”, da relação dos africanos com a natureza.