03 Set 2024
É possível começar uma carreira americana aos 74 anos? O ícone do cinema espanhol, Pedro Almodóvar, apresentou em Veneza a sua primeira longa-metragem em língua inglesa, uma história crepuscular de suicídio assistido protagonizada pelas atrizes americanas Tilda Swinton e Julianne Moore.
“The Room Next Door”, que concorre ao Leão de Ouro, segue Ingrid, uma romancista angustiada com o fim da vida (Julianne Moore), e Martha (Tilda Swinton), a sua amiga de infância, uma antiga repórter de guerra habituada a desafiar a morte, que vive sozinha no seu belo apartamento de Nova Iorque.
Através de alguns flashbacks, o filme rebobina a vida de Martha: a filha, que nunca criou por causa do trabalho e a quem nunca falou do pai biológico, os companheiros a quem nunca se afeiçoou. Uma mulher forte, livre, mas solitária.
Quando as duas amigas se reencontram, Martha tem um cancro em fase terminal. Recusando a perspetiva de um novo tratamento tão incerto quanto tentador, decide pôr termo à vida tomando um medicamento comprado ilegalmente na Internet.
Pede a Ingrid que a acompanhe nos seus últimos momentos, indo viver com ela numa sumptuosa casa alugada no campo, no “quarto ao lado”.
A amiga nunca estará longe, mas não terá de administrar o comprimido, que Martha tenciona tomar sozinha, uma noite, à porta fechada. Promete-lhe que nunca ninguém saberá do seu acordo. Mas Ingrid confia num homem, interpretado por John Turturro, que costumava ser o seu companheiro.
Almodóvar disse aos jornalistas que o filme realça a importância de acarinhar a vida, mas que também é vital permitir que as pessoas morram com dignidade na altura que escolherem.
“É um filme a favor da eutanásia”, disse Almodóvar, criticando países como os Estados Unidos, onde o chamado ‘suicídio por misericórdia’ é ilegal, ao contrário do que acontece no vizinho Canadá e numa série de outros países, incluindo a Espanha natal de Almodóvar.
“Penso que é urgente que esta lei exista em todo o mundo, sem qualquer regulamentação política ou judicial”, disse Almodovar, um cineasta experiente que rodou mais de 40 filmes em língua espanhola antes de se lançar no inglês.
“Para mim, é como começar um novo género, um filme em inglês, como a ficção científica”, disse na conferência de imprensa em Veneza.
“The Room Next Door” está muito distante do ruído e da fúria das comédias kitsch e provocadoras dos primeiros tempos do enfant terrible do cinema espanhol, bem como das alturas emocionais de “Tudo sobre a minha mãe” ou “Fala com ela”.
Também se afasta da veia autobiográfica mais recente (“Tristeza e Glória”) para optar diretamente pelo melodrama, sem revolucionar a forma de filmar um tema, a eutanásia, que é regularmente abordado no cinema. Procura, contudo, encontrar algumas fugas políticas e sociais, estabelecendo um paralelo entre o fim da vida e a catástrofe climática.
“Um mundo moribundo” – Almodóvar
Almodóvar, cujas obras são cada vez mais atormentadas pelo declínio físico e pelo medo da morte, voltou ao assunto na conferência de imprensa: “O filme fala de uma mulher que está a morrer num mundo que provavelmente também está a morrer. As alterações climáticas não são uma piada, não sei de quantas provas precisamos para que as pessoas vejam que é real.”
“Nasci na região de La Mancha, onde existe uma cultura profunda em torno da morte (…) Sinto-me muito próximo da personagem da Julianne (Moore), não consigo aceitar que algo que está vivo tenha de morrer. A morte está em todo o lado, mas é algo que nunca compreendi. Tenho 74 anos. Cada dia que passa é um dia a menos que me resta”.
Filmar nos Estados Unidos, em inglês, era um projeto há muito desejado pelo espanhol, mestre incontestado do seu país, autor de “Ata-me” e “A Lei do Desejo” e grande voz do cinema europeu.
Swinton diz que seguia Almodóvar desde os seus primeiros triunfos e que sempre quis trabalhar num dos seus projetos. Um dia… disse: ‘Ouve, por ti aprendo espanhol, ou podes fazer de mim uma muda, não me importo’”, contou.
Enquanto o público assiste à preparação de Swinton para o seu fim, Almodóvar sobrepõe à sua história avisos sombrios sobre a iminente catástrofe climática, que anula o destino de uma mulher. Apesar disso, no meio da escuridão, Swinton e Moore, disseram que viram luz e otimismo no filme, que contém flashes do humor caraterístico de Almodóvar e comentários sociais afiados.
“Saímos do filme com a sensação de nos termos visto a nós próprias, de termos visto outros seres humanos e de nos sentirmos cada vez mais gratos por cada dia que vivemos”, afirmou Moore, que ganhou o Óscar de melhor atriz em 2015 pelo desempenho em ‘Still Alice’.
Após várias tentativas frustradas em Hollywood, Almodóvar optou por rodar o filme na Costa Leste, no Estado de Nova Iorque, a cidade que lhe abriu as portas dos Estados Unidos quando se iniciou na década de 1980.
Em 2020, estreou a primeira média-metragem em inglês, “A Voz Humana”, baseada na obra de Jean Cocteau e protagonizada por Tilda Swinton. Três anos mais tarde, voltou a fazê-lo num formato ainda mais curto em “Estranha Forma de Vida”, um western gay com Ethan Hawke e Pedro Pascal.
Para “The Room Next Door”, voltou a contar com o compositor Alberto Iglesias para a banda sonora e com a colaboração de grandes marcas para o guarda-roupa das atrizes. “Cada personagem tem de ser vestida de uma determinada forma. Assim, são transmitidas muitas emoções”, explicou o realizador à AFP em junho.
“The Room Next Door” é um dos 21 filmes que concorrem ao prestigiado prémio Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza, que será entregue a 7 de setembro.
Fotos: Giorgio Zucchiatti La Biennale di Venezia – Foto ASAC