11 Set 2024
O novo filme de Rodrigo Areias pode ser considerado uma antologia cinematográfica da obra de Raul Brandão, militar, jornalista e escritor português, valorizando os temas da dor, da miséria, da loucura, do amor e da morte.
Baseado em “A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore”, o filme expande-se para uma visão muito ampla da obra de Raul Brandão, onde reconhecemos elementos narrativos e personagens de “Húmus”, “O Avejão”, “Os Pescadores”, “Os Operários”, “os Pobres”, “O Padre”, “O Doido e a Morte” e a “A Farsa”.
A linha narrativa essencial é encontrada em “A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore”, onde um conjunto de personagens habitam o mesmo espaço físico, uma pensão no centro de uma cidade ou nos arredores de uma cidade sobre as águas da ria de Aveiro.
A longa-metragem estreia nos cinemas a 12 de setembro e vai ser exibido em cine concerto com a presença do músico Dada Garbeck (Rui Souza), compositor da banda sonora, em algumas salas de cinema – Porto, Ovar, Lisboa, Guimarães, Seia são as primeiras cidades confirmadas.
Rodrigo, vale a pena falarmos de Raul Brandão no cinema português lembrando Manoel de Oliveira, que o apreciava e que o filmou. É através de Manoel de Oliveira que chegas à escrita de Raul Brandão?
Não, é muito antes. “O Gebo e a Sombra”, o filme que Manoel de Oliveira adapta, era uma peça de teatro com uma estrutura narrativa. É a última longa-metragem filmada pelo Manoel.
Por isso, na verdade, conhecia antes o Raul Brandão. A primeira obra que li foi “A Farsa”, nem é uma das suas obras mais conhecidas, e fiquei fascinado pela forma da escrita e, depois, cada vez que lia um livro, mais um e mais outro de Raul Brandão, ia sempre pensando de que forma é que isto, um dia, poderia ser transposto para imagens, porque a literatura de Raul Brandão é uma coisa muito específica, muito literal, muito visceral, muito sugestiva em termos de imagens, mas não muito narrativa no sentido estrutural. De certa forma, “A Morte do Palhaço…” é sempre aquele livro que eu achei que ia ser mais fácil adaptar.
Há um lado de desalento, este princípio cíclico do ponto de vista socioeconómico, de como lidamos com a permanente oscilação económica no nosso país. Há momentos em que este filme faz mais sentido e outros em que, se calhar, faz menos sentido. Ou seja, há dez anos seria difícil imaginar homens adultos a partilharem o mesmo espaço, ou a viverem numa pensão, como era há 100 anos, quando a obra foi escrita. Hoje, infelizmente, dado o estado da nação, faz muito mais sentido, porque há uma série de pessoas, homens e mulheres, que partilham um espaço, porque não têm, obviamente, como alugar uma casa, como ter outras condições de vida. Portanto, acho que, de certa forma, a história acabou por vir ter com os nossos ciclos socioeconómicos que, tragicamente, vão voltando.
Há algo que o cinema ainda possa fazer em torno de Raul Brandão, olhando para alguém que concluiu um filme que tem uma visão global da obra?
Acho que sim, acho que há sempre, eu acho por princípio que o mesmo argumento filmado por 100 pessoas diferentes dará 100 filmes diferentes, felizmente, se essas pessoas tiverem alguma coisa para trazer a essa história do ponto de vista do realizador. Por isso, acho que há sempre formas de adaptar as mesmas obras por pessoas diferentes.
Aqui, na verdade, há uma concentração sobre uma obra, a linha narrativa está em cima de “A Morte do Palhaço…”, que já por si é uma obra, já é um livro em camadas, um livro em cebola, se quiseres, em várias camadas, porque começa com o diário de K. Maurício, ou seja, há um escritor que é o próprio Raul Brandão, uma personagem do próprio, mas que o representa e vai criando outras personagens.
A minha intenção foi também manter exatamente essa lógica do livro no filme, em que de repente o próprio espectador, como o leitor, não vai entendendo exatamente tudo o que está a acontecer e é um puzzle que se vai montando até chegares ao fim e ficares na dúvida.
A chave para entender aquilo que propões nesta construção em torno do universo literário de Raul Brandão é ir encontrando as ligações, como é que uma personagem aparece numa peça, noutro texto, num outro conto, criando essa passagem, digamos assim, de uma obra para a outra?
Sim, a literatura de Raul Brandão é muito coesa. Há muitos personagens que vão aparecendo em muitas obras, como o Pita, ou seja, o mau da fita, se quisermos chamar-lhe assim, que é um personagem central em “A Morte do Palhaço” e depois vai aparecendo aqui e ali numa série de outras obras.
Por exemplo, a Adelaide Teixeira faz um papel que acaba por representar muitas pequenas personagens de várias obras. Por outro lado, também fui buscar um bocadinho de “Os Padres”, um livro periférico na obra de Raul Brandão que acaba por ser um manifesto de descontentamento com o posicionamento dos padres dentro da estrutura social da época.
Portanto, apesar de ser religioso, há um lado de descontentamento que ele põe por escrito numa época onde questionar a Igreja não seria necessariamente fácil e torna-se um ato de coragem. Ele faz um texto altamente crítico ao posicionamento dos padres e achei por bem colocar um pequeno trecho dessa obra num monólogo que o Gabiru faz à porta da Igreja insultando o padre que está a dar a missa.
Usaste uma expressão importante para percebermos o filme, que é “coesão” e que existe em função da tua visão cinematográfica. Queria perceber se é o território, a paisagem, que lhe dá essa coesão, porque o filme acontece na laguna de Aveiro, Ovar, Murtosa e Estarreja, há um espaço que é muito determinante e cinemático.
Eu acho que o espaço enquanto território tem a ver também com o meu fascínio por aquele lugar e por aquele espaço, também pela sua sub exploração do ponto de vista cinematográfico. É uma coisa muito vasta e há partes selvagens lindíssimas. Na preparação deste filme acabámos por dar uma volta de barco, percebendo as reentrâncias e por onde podíamos filmar e, de repente, percebemos que há ilhotas com casas lá no meio, uma coisa absolutamente fascinante. São casebres onde as pessoas vão para estar isoladas.
De repente, começas a conseguir conjugar toda a narrativa, todos os espaços que vamos imaginando em cima da água, somando um bocadinho daqui, um bocadinho dali. Portanto, no fundo, há uma pesquisa do território, que é uma parte que eu gosto bastante, para além da parte de estudar os assuntos que me interessa retratar.
De certa forma, preservas essa ideia de abstração, olhando para a obra com esta amplitude, há também uma abstração que é de Raul Brandão, correto? Parece um mundo invertido muitas vezes, não é?
Sim, até decidi alterar o verbo da expressão de Raul Brandão, do título que dá título ao filme de “A Pedra Espera Dar Flor” para “A Pedra Sonha Dar Flor”. Na verdade, só troquei o verbo no final da montagem do filme.
No fundo, cheguei à conclusão de que o verbo devia ser trocado, porque a questão do sonho é muito mais importante, esta coisa da quimera, ‘a vida é uma quimera’ como canta Dada Garbeck a certo momento do filme, usando as palavras de Raul Brandão.
É, de certa forma, o mote do filme. Esse lado da literatura de Raul Brandão fascina-me, essa coisa mais abstrata, não tão concreta. Mas, por outro lado, num filme é preciso respeitar estruturas narrativas, é preciso ter uma história, e o meu cinema nem sempre respeita isso. O que eu gosto é de fazer de conta que há uma história para contar, quando o que eu tenho para propor é uma viagem a um espectador. Eu sei que isso não será muito popular nos dias que correm.