joao lopes
10 Abr 2014 2:04
Como é fazer um épico bíblico em 2014? Ou ainda: como reinventar (cinematograficamente) a odisseia da Arca de Noé?
São perguntas, no mínimo, motivadoras, quanto mais não seja porque o género deixou marcas importantes ao longo de todas as épocas da história do cinema, a começar pelo período mudo — lembremos as referências lendárias de “Quo Vadis?” (Itália, 1912), de Enrico Guazzoni, ou a primeira versão de “Os Dez Mandamentos” (EUA, 1923) dirigida por Cecil B. DeMille.
Pois bem, Darren Aronofsky parece ter ficado (ou a isso foi compelido) pela mais equívoca das respostas: o seu “Noé” parece depender menos de qualquer temática ou inspiração bíblica, mostrando-se mais dependente da necessidade (?) de se parecer com a agitação das sagas de “super-heróis”, mais ou menos influenciadas pelo negrume visual de “O Senhor dos Anéis”…
Como sempre, a questão dos efeitos especiais não tem a ver com a “boa” ou “má” qualidade da respectiva gestão — o que se discute é o modo da sua aplicação narrativa. E chega a ser patético, por exemplo, que os animais da Arca sejam figurados duas ou três vezes (sempre de forma estranhamente breve) através de uma massa informe de figuras digitais, sem que, em algum momento, se sinta a singularidade de qualquer presença. Vale a pena ver ou rever “A Bíblia” (1966), de John Huston, e avaliar as diferenças.
Russell Crowe parece algo à deriva na sua personagem, não sendo, aliás, muito beneficiado por diversos elementos de figuração (desde o guarda-roupa até à variedade de cortes de cabelo com que é representado). Jenniffer Connelly, no papel de Naameh, mulher de Noé, coloca o seu talento ao serviço de alguns dos poucos momentos de intensidade emocional do filme, mas é pouco… E tanto mais que a utilização da personagem de Tubal (Ray Winstone) parece depender apenas da vontade de garantir um cliché de “duelo”, algures lá mais para o final do filme…
Enfim, é pena que um tema tão rico — e que já inspirou tantos cineastas — acabe por surgir reduzido à rotina “funcional” de um telefilme que pôde desfrutar de meios de produção muito acima da média. Reveja-se também, por exemplo, a versão mais moderna de “Os Dez Mandamentos” (1956), por DeMille, e repare-se nas diferenças de ousadia temática, criatividade visual e, last but not least, convicção.