joao lopes
8 Mai 2014 20:54
Será que podemos definir "Debaixo da Pele" (título original: "Under the Skin") como um filme de ficção científica? Sim — afinal de contas, esta é a história de uma alien, interpretada por Scarlett Johansson, que desce à Terra, apoderando-se do corpo de uma jovem, e viajando pelas paisagens da Escócia atraindo homens para um fim angustiante…
E será que podemos também classificar "Debaixo da Pele" como um filme tocado por toda uma herança realista ligada ao realismo britânico? Podemos dizer que sim, desde logo porque os ambientes são registados de forma muito directa, quase documental, sem esquecer que o realizador Jonathan Glazer é inglês (nascido em Londres, em 1965), tendo, por certo, a sua formação ligada a mestres como John Grierson (curiosamente, de origem escocesa).
Tudo isso nos pode ajudar a definir as singularidades de "Debaixo da Pele" e, ao mesmo tempo, tudo isso se revela insuficiente para darmos conta da estranha beleza e do bizarro fascínio de um filme que, goste-se muito ou goste-se pouco, tocará qualquer espectador pelo carácter único da sua experiência.
Porque é disso mesmo que se trata — de uma experiência que, em primeiríssimo lugar, valoriza o cinema, não exactamente como um instrumento de ilustração de histórias com "princípio-meio-e-fim", mas sim como uma ambiência audiovisual capaz de nos convocar para um desafio sistemático e subtil das formas correntes de percepção & pensamento.
Glazer, vale a pena recordar, já nos tinha envolvido numa aventura igualmente intensa com o belíssimo "Birth – O Mistério" (2004), em que Nicole Kidman interpretava uma jovem viúva, um dia visitada por um rapaz de 10 anos que lhe diz ser o seu marido reencarnado… Aliás, também no seu trabalho na área dos telediscos, Glazer assinou trabalhos notáveis que desafiam as lógicas correntes das imagens e das suas "mensagens" — vale a pena recordar o caso admirável de "Street Spirit (Fade Out)" (1996), dos Radiohead.
"Debaixo da Pele" possui, assim, a singular energia de um evento em que participamos, sentindo e pressentindo a perturbação que envolve os seus elementos figurativos e a sua geometria afectiva. Por um lado, transporta-nos para uma dimensão alternativa onde adivinhamos, mesmo sem saber enunciá-las, as leis de outros mundos; por outro lado, tal projecção (e a palavra arrasta uma significação primordial do cinema) parece devolver-nos a qualquer coisa de muito terreno e carnal, aí onde se jogam as relações nunca estabilizadas entre masculino e feminino.
Aliás, tendo em conta o misto de energia e mistério das personagens de Nicole Kidman e Scarlette Johansson filmadas por Jonathan Glazer, poderá dizer-se que ele é alguém que enfrenta os estereótipos correntes de abordagem do corpo, da sexualidade e dos desejos das mulheres, de algum modo questionando as "certezas" (masculinas ou não) que reduzem o seu espaço a meia dúzia de clichés sociais e sociológicos — em "Debaixo da Pele", Johansson é mesmo, de uma só vez, um ser alienígena e uma vibrante e indizível presença humana.
Estamos perante um objecto que, não apesar dos diferentes juízos de valor que suscita, mas precisamente por causa de tais diferenças, se poderá transformar, com o tempo, num peculiar objecto de culto. Os mais entusiastas têm referido Stanley Kubrick como um modelo simbólico para Glazer. E não é caso para menos: tal como "2001: Odisseia no Espaço" (1968), "Debaixo da Pele" é uma trip a que podemos sempre regressar, compreendendo que a fronteira entre o real palpável e a irrealidade sem nome é, provavelmente, uma mera e dispensável convenção.