Joaquim Pinto e Nuno Leonel: para além das convenções do género documental


joao lopes
30 Ago 2014 0:54

Não é fácil, muito menos simples, decidir fazer um filme expondo a intimidade — a sua própria intimidade. Para além do desafio interior que tal implica, não podemos esquecer que vivemos um tempo em que, desde os horrores do "Big Brother" à irresponsabilidade da chamada imprensa "cor-de-rosa", a noção de privacidade se tornou muitas vezes num dado irrisório, descartável, meramente instrumental no interior do mais baixo mercantilismo audiovisual.

Daí as singularidades de um filme como "E Agora? Lembra-me". Por um lado, o realizador, Joaquim Pinto, parte de uma situação, no mínimo, perturbante: trata-se de começar por filmar o período do seu próprio tratamento, com drogas experimentais, contra os vírus VIH (sida) e VHC (hepatite C). Por outro lado, ao acompanharmos a existência do par formado por Joaquim Pinto e Nuno Leonel deparamos com uma experiência muito para além das fronteiras tradicionais do cinema e, em particular, daquilo que se convencionou chamar o "documentário".
Dizer que nunca vimos um objecto deste teor no interior da produção cinematográfica portuguesa é dizer pouco — de facto, em qualquer contexto, são raros os filmes capazes de aceder deste modo ao que é do domínio privado, preservando as suas intensidades irredutíveis e solicitando o espectador para uma visão que se vai transfigurando numa saga imensa sobre o viver e o sobreviver, o amar e o ser amado, a matéria do corpo e as coisas imateriais, mas não menos intensas, para as quais já não temos nome.
Para além da delicadeza dos temas, para além da depuração dos olhares que o fazem mover, "E Agora? Lembra-me" é também um filme que nos ajuda a perceber um pouco melhor as potencialidades dos novos formatos digitais e, em particular, das câmaras que permitem aceder de forma serena à mais radical intimidade. Não se trata, como é óbvio, de qualquer fetichização da tecnologia. Trata-se, isso sim, de reconhecer que a dinâmica criativa do cinema se joga sempre a partir de relações específicas entre o aparato técnico disponível e a verdade humana de quem filma e é filmado — neste caso, Joaquim Pinto e Nuno Leonel conseguem o prodígio de estar de ambos os lados, para mais convocando o espectador para uma descoberta cúmplice.

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