Curiosa interrogação a percorrer, como uma espécie de subtexto, a 25ª edição do Curtas Vila do Conde. A saber: quais as fronteiras actuais do documentário? Ou talvez, melhor: até que ponto o olhar documental se sente tentado pela ficção? Ou ainda, mais radicalmente: o que pode ser documental num tempo — e numa paisagem mediática — todos os dias ocupada pelo espontaneísmo naturalista da televisão?
Um festival de cinema não tem, obviamente, de responder a tais perguntas, muito menos de avançar com soluções para as encarar ou superar. Mas pode servir de câmara de eco dos respectivos temas e dúvidas — e é verdade que o Curtas continua a demonstrar a capacidade de funcionar como tal. Eis alguns títulos em que podemos encontrar sugestivos sintomas:
— MANODOPERA, de Loukianos Moshonas (Grécia): as tarefas de reconstrução de um apartamento, em Atenas, são pontuadas por conversas entre os respectivos trabalhadores, dir-se-ia uma reportagem sobre trocas de pontos de vista em que emergem questões que vão da circulação do dinheiro à procura da felicidade — não é um documentário, em sentido estrito, antes uma ficção contaminada por uma subtil pulsão documental.
— ALL THE LEAVES ARE BROWN, de Daniel Robin (EUA): Daniel Robin filma, e filma-se, num movimento de dupla angústia: por um lado, o pai está a perder a memória; por outro lado, ele próprio sofre de uma doença que o faz, gradualmente, ir perdendo a voz — o olhar documental acaba por se revelar tanto mais intenso quanto se apresenta alicerçado numa pose absolutamente intimista.
— STUDIES ON THE ECOLOGY OF DRAMA, de Elja-Llisa Ahtila (Finlândia): o que nos envolve é, aqui, o ponto de partida pedagógico. Estamos, assim, perante uma série de lições ministradas por Kati Outinen (actriz que conhecemos de vários filmes de Aki Kaurismäki), propondo algumas reflexões sobre o que significa representar e, em última instância, partilhar uma visão do mundo através do cinema — trata-se de saber como somos espectadores.
— OÙ EN ÊTES-VOUS, JOÃO PEDRO RODRIGUES?, de João Pedro Rodrigues (Portugal): produzido pelo Centro Pompidou, no âmbito da retrospectiva de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (em finais de 2016), esta é uma espécie de simulação autobiográfica cuja energia poética a distingue de tudo o que pude ver em Vila do Conde — um filme, enfim, que desafia o próprio conceito de autobiografia, sem deixar de ser um objecto eminentemente confessional, de uma transparência rara e preciosa.