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26 Jun 2025

“O Ancoradouro do Tempo” é uma adaptação do livro de Mia Couto, “A Varanda do Frangipani”. O filme é realizado por Sol de Carvalho. Resultou de um encontro de amigos moçambicanos com vontade de fazer uma longa-metragem em conjunto.

Trabalhámos juntos muitas vezes. Fiz um filme baseado num conto curto dele e foi a partir desse filme que o Mia disse que tínhamos de fazer um filme em conjunto. Tudo bem, tu vais fazer uma viagem ao cinema, eu faço uma viagem à literatura e vamos fazer essa ponte.

Eu acho que o facto de nós termos uma visão sobre o mundo, que é comum, e uma experiência que é comum também, que é a experiência dos 50 anos de Moçambique, fiz questão que ele participasse e ele fez questão em participar como um processo de aprendizagem em relação ao cinema e eu com um processo de aprendizagem em relação à literatura.

A sugestão do livro para adaptar para o cinema foi do escritor Mia Couto. O realizador Sol de Carvalho, depois de ler o romance, ficou atraído pelo local da ação.

Ele é que sugeriu o livro, inicialmente, e eu disse ok, eu quero ler o livro, porque já houve outras sugestões e agora já tem a ver com as minhas opções sobre filmagem. Eu gosto de filmar em espaços relativamente fechados, onde a gente pode entrar mais em profundidade sobre os assuntos e em que os espaços também nos deem palavras, e que nos deem poesia, e que nos deem texto, e que nos deem profundidade. A ilha, a Fortaleza, obviamente, é um espaço desses.

Quando li o livro e sabendo que o livro tinha sido originalmente inspirado na própria ilha, obviamente que eu disse ok, vamos fazer isso. Apesar de que foi uma dificuldade, no sentido que a logística da ilha, levar uma equipa, levar equipamentos, etc., é complicado, mas nós tivemos que optar por isso, porque aquele espaço era o único que nos podia ajudar a dizer aquilo que a gente queria.

O espaço, a ilha de Moçambique, ajuda a contar a história no cinema. “O Ancoradouro do Tempo” pode ser visto como um policial. Acompanha a investigação de um jovem inspetor que vai à procura do autor de um crime ocorrido numa antiga fortaleza colonial transformada em lar.

Foi feito na Fortaleza de São Sebastião, na ilha de Moçambique, com a ideia, desde o princípio, falada com as autoridades locais, de que se trataria de um espaço que estaria afastado, digamos assim, da civilização, onde só se podia chegar de barco. E essa é a ideia, porque a ilha tem mais habitantes, mas nós isolámos a Fortaleza. A ideia era mesmo ficar dentro do Forte, não era sair do Forte.

Sendo assim, elas próprias também podem olhar mais para dentro, em vez de estar a ser perturbadas por tudo o que se passa fora. E isso permitia, dentro daquela história, conseguir chegar aqui.

O realizador moçambicano Sol de Carvalho partiu também da ideia de memórias, para dar título ao filme “O Ancoradouro do Tempo”.

“O Ancoradouro do Tempo” tem a ver com essa história das memórias, porque a água não tem memória, a água apaga as memórias, mas, ao mesmo tempo, aquelas pessoas são os portadores dessa memória, são os portadores dessa história. E nós, sem essa história, não somos nada.

Estrear o filme quando se celebram os 50 anos da independência e Moçambique atravessa uma altura de tensão política e social é apenas uma coincidência.

Não foi propositado, as coisas estavam marcadas, e aconteceu. No momento em que Moçambique está numa situação complicada, não vai ser igual, eu acho que Moçambique não vai ser igual a partir de agora. Alguma coisa vai ter que mudar.

A única coisa que tenho a certeza é que, de alguma forma, vai ter que se resolver. E, obviamente, não espero que se resolva para o mal. Quando digo para o mal, não sei bem o que é isso. O que sei é que não quero que pessoas morram, não quer que pessoas sejam assassinadas, não quero corrupção. É preciso que as pessoas todas tenham dignidade e que as instituições sejam reconhecidas, e é preciso paz, obviamente. Nós já estamos há demasiado tempo em guerra.

“O Ancoradouro do Tempo” adapta o romance “A Varanda do Frangipani”, de Mia Couto. Para criar o argumento, o escritor moçambicano teve de se distanciar da obra e usar uma linguagem cinematográfica.

Primeiro, eu preciso de me distanciar desse livro e de todos os outros. Perceber que há ali personagens que são secundários, mas talvez agora, nesse regresso, eu quisesse que eles tivessem mais luz, tivessem mais visibilidade. E há uma coisa única, uma espécie de oportunidade de reescrita do que já tinha ficado fechado. E saber que estou a fazer isso de uma maneira que eu próprio não sei fazer.

Agrada-me muito começar a fazer uma coisa que eu percebo à partida que é quase impossível, porque não é a minha linguagem, porque não é o meu território, não é a minha praia, como se diz, mas isso, em vez de me intimidar, dá-me entusiasmo para visitar essa outra linguagem.

Mia Couto esteve envolvido em todo o processo de construção do filme, acompanhou as filmagens, trabalhou em conjunto com o realizador e com os atores.

Esta versão foi sendo trabalhada. Foi um privilégio enorme ter podido passar por todas as fases. Normalmente o escritor fica lá, faz o roteiro e depois… mas eu acompanhei todo o trabalho, o prévio, o preliminar e a pós-produção também.

Na maior parte das filmagens estive com os atores. Os atores pediam-me, olha, não dá para tu mudares esta fala e eu mudava. Isso é uma coisa maravilhosa.

O livro, “A Varanda do Frangipani”, foi publicado a seguir à Guerra Civil. O que está a acontecer em Moçambique não deixa Mia Couto indiferente. Compreende que pode ser difícil, mas considera que o país tem de aprender com os erros.

Infelizmente é muito difícil pedir isso a um país, porque o que a gente vê no mundo hoje é uma cruzada de culpas, um ambiente de hostilidade, de busca de culpados, etc. Em Moçambique também, infelizmente, essa tentação é mais forte do que aceitar. Olha, erramos todos, vamos sentar, vamos encontrar o caminho.

Para acabar a Guerra Civil, que demorou 16 anos, e eu fiz este livro logo após essa guerra, fizemos isso. Tivemos que nos sentar, reumanizar juntos. Então, houve essa experiência coletiva em Moçambique.

A maioria dos jovens moçambicanos não viveram essa experiência traumática, nasceram depois da guerra. Essas são coisas que se aprendem por vivência, não se aprendem pelos livros. 

  • Margarida Vaz
  • 26 Jun 2025 20:27

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