24 Mai 2023 11:23
O caso interessou Spielberg, mas foi Marco Bellochio quem acabou por fazer um filme sobre o tema: o cineasta italiano reabre uma página negra do anti-semitismo da Igreja Católica com um filme em competição sobre o rapto de uma criança judia de Bolonha, por ordem papal.
” O Rapto” volta a abordar o caso de Edgardo Mortara, nascido em meados do século XIX no seio de uma família da comunidade judaica de Bolonha.
A criança foi baptizada secretamente por uma criada e separada dos pais em 1858, aos sete anos. Um rapto ordenado pelo Papa Pio IX, anti-semita e obscurantista, a fim de ser educado na religião católica em Roma.
Depois das Brigadas Vermelhas, recentemente abordadas na mini-série “Esterno Notte”, ou da luta contra a máfia (“O Traidor”), Bellochio debruça-se agora sobre um caso que foi notícia na época, mas que entretanto caiu no esquecimento.
“É um episódio importante da história italiana, porque é um dos últimos raptos realizados em nome da Igreja em Itália”, numa altura em que o Papa era também rei e em que o país estava em vias de se unificar, conta Marco Bellochio, que denuncia o dogma e o proselitismo.
“As forças liberais e progressistas interpretaram o acontecimento como bárbaro e este pequeno facto provocou um escândalo em todo o mundo”, continua o cineasta, seleccionado por mais de uma dezena de vezes em Cannes e membro do júri em 2007.
Sob a forma de um fresco histórico, o filme reconstitui a luta da família Mortara contra as forças da Igreja para recuperar o pequeno Edgardo, até à acção judicial movida pelas novas autoridades laicas contra o antigo inquisidor da cidade, autor do rapto.
Aos desafios políticos junta-se uma dimensão íntima, numa família afectada pela história da Itália em curso, por altura do Risorgimento, a unificação do país.
O próprio Edgardo parece estar preso num “síndroma de Estocolmo”: dividido entre a lealdade à família e ao catolicismo. Tornar-se-á padre, nunca abandonará as ordens e tentará converter a mãe até ao fim.
Uma história de violência
Este caso, ilustrativo do anti-semitismo do Papa Pio IX, interessou Steven Spielberg, realizador de “A Lista de Schindler”, que pensou em contratar Mark Rylance para o papel do Papa.
Marco Bellochio observa que no último filme de Spielberg, “Os Fabelmans”, muito autobiográfico, o realizador mostra um adolescente judeu hostilizado pelos colegas, que o acusam de ter “matado Cristo”.
Um ataque anti-semita clássico, que inspirou Bellochio – educado no catolicismo antes de se separar dele – a criar uma das sequências mais poderosas de “O Rapto”, onde Edgardo é visto a retirar os pregos das mãos e dos pés de um Jesus na cruz.
O realizador de 83 anos, um dos maiores nomes do cinema italiano contemporâneo, tem atacado incansavelmente as instituições e a Igreja, um dos pilares da sociedade italiana, nomeadamente em 2002 com “O Sorriso da Minha Mãe”, apresentado em Cannes.
“Falar da Igreja Católica era mais difícil nos anos 50 ou 60, quando a democracia cristã tinha um poder forte e rígido” e havia “uma espécie de censura preventiva”, explica. Actualmente, “o poder da Igreja diminuiu muito, está numa fase de recuo, pelo menos na sociedade civil”.
Quando questionado pela AFP sobre as semelhanças entre o rapto descrito no filme e o rapto de crianças ucranianas na Rússia desde a invasão, Bellochio disse que ficou “muito impressionado”, apesar de ter imaginado “O Rapto” muito antes da guerra. “Ou é política ou é religião, mas em ambos os casos há uma violência objectiva”.