Catarina Alves Costa: “Orlando Pantera é um músico do mundo”
Realizado a partir de um encontro com a filha do músico, "Orlando Pantera" devolve ao presente a voz e o legado do artista cabo-verdiano que transformou os ritmos ancestrais das ilhas em música universal.
Catarina Alves Costa regressa os cinemas nacionais com “Orlando Pantera”, um novo documentário exibido este ano no Porto/Post/Doc, no M-Doc Festival de Cinema de Malgaço e no Indie Lisboa. Um filme que documenta o percurso do músico cabo-verdiano Orlando Pantera, que nasceu em 1967 e morreu no início deste século, em 2001, com 33 anos.
Orlando Pantera marca a música de Cabo Verde e o filme é uma viagem no tempo e, também, uma longa viagem do ponto de vista cinematográfico. Convém começar por aí. Já tinhas integrado o músico Orlando Barreto Pantera no teu cinema.
Em 2000 fiz o “Mais Alma”, outro filme sobre artistas, músicos, compositores e dança. Nessa altura, filmamos alguma coisa com o Pantera que integra, de facto, esse filme. E foi logo a seguir que o Pantera morreu. Portanto, fiquei com material que se tornou muito valioso. Porque, para além de termos convivido e seguido a vida… Quando digo nós, é porque estava a trabalhar com o operador de som Olivier Blanc. Passámos alguns dias com o Pantera e gravámos músicas a pedido dele. Ele próprio nos pediu se podíamos gravar algumas músicas. E essas músicas tornaram-se bastante conhecidas, circularam muito depois disso.
A música continuou e o material não podia ficar na gaveta. Ou seja, sentiste claramente a necessidade de fazer algo diferente?
Sim, tinha esse material e estava sempre a pensar, um dia tenho que fazer uma coisa sobre o Pantera. Percebi que ele tinha virado uma espécie de mito, uma personalidade muito importante em Cabo Verde e no mundo musical em geral também, fora de Cabo Verde. Uma referência, na verdade. Sabia que queria fazer alguma coisa com esse material, não sabia como avançar. E foi a própria filha do Pantera, a Darlene.

Esse é o segundo momento, era aí que queria chegar, justamente.
Ela tinha seis anos, quando o pai morreu. Tinha uns 24 ou 25, quando veio para Lisboa estudar. Combinámos um encontro e ela disse-me que não sabia nada do pai, que tinha poucas memórias e o que conheço do meu pai são os bocadinhos que eu vi no teu filme “Mais Alma”. A maneira como ele ri, como anda, como ele… Essa história fez-me muito pensar sobre o impacto das coisas que nós filmamos, que às vezes nós próprios não nos apercebemos, do impacto que isso tem nas pessoas, quando fazemos documentário.
A partir daí começamos a falar, mostrei-lhe outro material que tinha e surgiu a ideia de se fazer este filme, porque ela própria já andava também à procura de gravações, à procura de arquivos… Este projeto surgiu muito naturalmente daí. Na verdade, acho que ela foi a pessoa que me fez pensar, sim, já estamos na outra geração, chegou à altura de fazer este filme. E avancei para o projeto.
Estou muito contente pelo impacto que eu sinto que este filme tem nas pessoas. É uma história muito bonita. Por um lado, deu-me a possibilidade como realizadora de construir uma personagem que é um bocado alter ego meu, que é a filha, por outro lado, do que é a banalidade e a complexidade da vida e o que acontece na vida do Pantera.
Ele teve muitas vidas, como todos nós. Trabalhou muito tempo como educador social nas aldeias SOS, com crianças, trabalhou com crianças de rua. Depois, profissionalizou-se, veio para Portugal com o convite da Clara Andermatt. Esteve três anos em Portugal, fizeram uma digressão do mundo com o espetáculo “Uma História da Dúvida”, depois volta para Cabo Verde. Enfim, tem uma vida interessante porque não tinha o objetivo de se tornar uma pessoa famosa. Hoje é difícil perceber isso porque quem não aparece não é famoso.
Isso também é, muitas vezes, a história e a essência dos músicos cabo-verdianos.
Há uma viagem no tempo, mas também há uma viagem de descoberta para a própria filha e para os espectadores e os prémios do público são sempre muito reveladores desse ponto de vista. Sentes que o filme está a contribuir para dar uma dimensão maior à música de Orlando Pantera, uma dimensão prematuramente cortada pela morte, porque ele estava prestes a entrar em estúdio para gravar o primeiro álbum a solo, quando morreu em 2001.
O filme tem tudo aquilo que era importante ter. Antes de mais a música, o Pantera a cantar, tudo isso é inédito, são coisas que as pessoas nunca ouviram, ouviram, se calhar, cantadas por outros, mas são imagens que ficaram sempre inéditas. É o Pantera a cantar e são as pessoas hoje a cantar Pantera.
Pessoas muito jovens, algumas que não são artistas conceituados, outros que são artistas conceituados. Temos a Maira Andrade, no que eu acho que é um momento muito bonito do filme. Temos o Princesito a improvisar. Depois, em segundo lugar, a própria vida, a partir de fotografias que fomos encontrando. Reconstituimos os momentos da vida, os dramas, os problemas, as coisas que acontecem. Encontrar os amigos, as pessoas que o conheceram.
Antes de mais é devolver o contexto da música, porque o próprio filme também desmonta as letras. É como se as letras estivessem lá, mistérios, escondidos sobre coisas que aconteceram na vida dele. O filme também vai um bocadinho por aí. Pela minha parte, do ponto de vista mais emocional, acho que consegui fazer o luto de alguém que morre quando estamos a fazer um filme. E ser capaz, outra vez, de olhar para aquilo com alegria, porque o filme é muito alegre também.
O documentário tem uma dimensão de homenagem. Celebra a música de forma muito clara e, num determinado momento, lentamente, assume a forma de uma elegia. Concordas com isso? Existem esses dois momentos?
Sim, completamente. Acho que só tive o impacto do que aconteceu no mundo e no mundo musical com a morte dele, no processo de fazer este filme. Nesse sentido, sim, é uma elegia, mas é uma elegia que não romantiza o personagem, que o tenta humanizar e torná-lo alguém que as pessoas poderiam ter conhecido, ter encontrado. E não alguém que está lá nos píncaros.

Gostaria de perceber contigo o que significa o Pantera no contexto da música cabo-verdiana, o que ele dá à música de cabo-verde que ganha esta dimensão universal. No fundo, também queria perceber contigo o que torna a música de cabo-verde tão universal. São os ritmos pan-africanos, é a alegria natural?
O gesto musical do Pantera é baseado numa ideia de recolher os ritmos mais ancestrais de cabo-verde. Os chamados afro. O batuco, o funaná, os ferrinhos, a tabanca, são formas musicais que são uma mistura das populações escravas e dos portugueses. E depois a morna, que é um fenómeno dentro da música.
O Pantera recolhe esta base e transporta esta base musical para uma musicalidade com um toque muito contemporâneo e jazzístico. Nesse sentido, ele faz a sua própria música, é muito original, ele escreve, compõe, toca, quase todos os momentos que temos no filme são acústicos.
Isso acho que é o grande ganho da música do Pantera, ter recuperado esse aspeto mais afro da música de cabo-verde, ter recuperado no sentido de o trazer para dentro de uma possibilidade de fazer espetáculos, se quiseres mais, eu diria, eruditos.
Por exemplo, no caso da dança contemporânea, onde o Pantera fez muita direção musical. Ele foi capaz de fazer essa transição e essa transição é muito importante, porque não se trata de folclorizar a música original e de a reproduzir, trata-se de fazer um trabalho em cima disso, muito criativo, e eu acho que esse gesto musical, principalmente hoje, traz muito boa música, essa possibilidade de ir às raízes.
Mesmo nós vemos isso acontecer na música portuguesa e noutros lugares. Acho que é muito interessante, a mim interessa-me. Inclusivamente, ele teve a ideia de um disco que nunca gravou, que se chamava mesmo “Recoja”, em crioulo, e que era essa ideia de recolha. Por exemplo, ele traz o búzio, um instrumento tocado nas festas da tabanca, para dentro da música dele. Temos uma interpretação do “Dos Manos”, uma das mais bonitas músicas do Pantera, em que ele toca o búzio em palco, no palco do Festival Baía das Gatas, muito pouco tempo antes de morrer.
Achas que algo ainda pode mudar? Há uma transformação na forma como o vamos escutar e interpretar? Para além do teu filme, a partir do teu filme, obviamente, ele é um símbolo da identidade e cultura cabo-verdiana. Poderá tornar-se um símbolo maior?
Creio que sim. Para já, porque cabo-verdianos há em todo o lado. Estão muito espalhados. Por outro lado, porque há uma universalidade na música que nós conhecemos. Ela toca-nos de maneiras insondáveis. Acho que é mesmo um músico do mundo, no sentido de pertencer ao mundo.
É muito interessante ver jovens a tocar e a cantar Pantera, mas a tocar e a cantar não reproduzindo as interpretações do Pantera, mas fazendo as suas próprias interpretações em cima disso, ou fazendo samplings em raps. Enfim, como aquela música ficou para a história de uma forma subterrânea. Isso acho que é muito forte.
De alguma maneira, nós tivemos um bocadinho a ver com esse processo. Nós e outras pessoas, como, por exemplo, o João Lucas, que também gravou coisas do Pantera. Essas são as gravações que ficaram. E espero que saiam para o mundo um dia.
A responsabilidade de fazer um filme destes é mais a de fazer algo que não seja o fim de um ciclo, mas que seja uma espécie de princípio de um ciclo. As pessoas falam da música do Pantera como a música do futuro. Logo no princípio do filme alguém diz que temos de esperar para aí uns 200 ou 300 anos para perceber esta música.