

Edgar Pêra aproxima Pessoa e Lovecraft com inteligência artificial
O filme "Cartas Telepáticas" une os dois escritores por meio de uma correspondência imaginária. Para o realizador, os sonhos e alucinações digitais abrem novas possibilidades narrativas e visuais.
Em entrevista ao CINEMAX, o realizador Edgar Pêra fala sobre o seu mais recente filme, “Cartas Telepáticas”. Um filme inovador dentro do cinema inovador de Edgar Pêra, porque foi desenvolvido utilizando aplicações de inteligência artificial. Um filme que ficciona uma troca de correspondência entre o poeta Fernando Pessoa, e o escritor norte-americano H.P. Lovecraft, com recurso a inteligência artificial.
É necessário entrar no universo da inteligência artificial para aproximar estes dois autores?
Bom, prefiro chamar-lhe inteligência animal porque, por enquanto, são os humanos que pensam e são inteligentes, enquanto não houver autonomia da IA. Li hoje, por acaso, que a China já está a tentar criar programas em que a IA seja autónoma, mas até lá, para mim, é a inteligência animal de um lado e a estupidez artificial do outro.
Fala-se muito de inteligência artificial hoje, quando já se usava até para a escrita, enfim, dita inteligente. No fundo, o que existe é uma lógica de algoritmo e o que fizemos neste filme foi domesticar esse algoritmo, ou criar um ambiente muito obsessivo, também de criação de imagens em que às vezes eu escrevia só ‘um homem’ e aparecia uma imagem do Fernando Pessoa.
Isto para dizer que aquilo que me interessa mais não é o ‘ghost in the machine’, é o ‘mushroom in the machine’, ou seja, os sonhos e alucinações da IA, que ainda é um bebé, quando a partir de uma instrução cria algo totalmente inesperado e isso já me acontece com os atores, acontece com um novo tipo de câmaras, portanto usei isso como uma ferramenta e não como um agente do mal.
É como, a um nível muito mais primário, um martelo. Um martelo pode ser usado para trabalhar, mas também para um ato de violência. Agora temos que pensar que é um martelo quase com pernas e, qualquer dia, com cérebro.
Portanto, deixa de ser uma ferramenta para ser sobretudo um agente de intervenção na sociedade.
O mais importante para mim deste filme foi, por um lado, fazer uma ligação que ainda não tinha sido feita entre estes dois escritores, porque Lovecraft também escreveu poemas e Pessoa também escreveu histórias, muitas delas inacabadas, como o ‘The Door’, que é uma história de um terror psicológico em que ele usa uma frase muito semelhante à de Lovecraft sobre o medo do desconhecido ser o maior medo de todos.
Há uma série de ligações que fui descobrindo e que se foram acumulando até este projeto. Com um orçamento de documentário seria muito difícil criar todos os tipos de monstros de Lovecraft, por exemplo, ou a multiplicação de Fernandes Pessoas.
A IA foi uma ferramenta que surgiu na altura certa. Ainda sei a data, 2 de setembro de 2022, quando passei a produzir centenas de milhares de imagens por mês. Depois apareceram outras aplicações para criar a imagem em movimento e para pôr as pessoas a falar. Pude assistir de muito perto a uma evolução prodigiosa.
Fomos aproveitando as fases beta em que a imagem às vezes pode parecer VHS, ou de arquivos antigos, ao ponto de, em Locarno, terem perguntado onde tinha ido buscar aqueles filmes e se tinha direitos daqueles filmes quando, no fundo, aquilo é um ‘mash-up’.
Acabamos por criar arquivos do passado, mas feitos no futuro que, com filmes surrealistas da época, se misturam, ou pelo menos confundem-se.
Ou seja, abriu-se aqui a possibilidade de criar imagens que é impossível filmar e que remetem para o universo de Lovecraft e também de Pessoa e para outra época. O que é comum aos dois?
Acumulei as questões da loucura na família, o facto de só terem publicado um livro no último ano de vida e depois terem legiões de fãs e de admiradores e de escritores influenciados, quer por Lovecraft, quer por Pessoa. Ou seja, não foram glorificados em vida como são hoje. Há um contraste enorme entre a vida e o destino da obra, que não é assim tão rara. No fundo, o que me interessou mais foi como olham para a humanidade como espectadores cósmicos.
O filme começou por ser uma coisa mais banda desenhada, mais animação, fotomontagem e depois evoluiu. Falo com pessoas que se queixam de a IA não fazer aquilo que pedem e eu gosto é que não façam aquilo que eu estou a pedir, que façam uma derivação. Aproveito o inesperado. Faço o mesmo com os atores, com os atores, com o diretor de fotografia. Muitas vezes estou à espera que não aquilo que pedi, mas que resolvam o problema que equacionei. Estou sempre aberto a esse inesperado e depois logo decido qual é o inesperado que convém ao filme.
O Edgar Pêra é conhecido por experimentar outras possibilidades narrativas e visuais. O 3D, por exemplo, está também no teu percurso cinematográfico, essa experimentação. Com a inteligência artificial há aqui uma hipótese de desenvolver uma narrativa cinematográfica quase primordial?
Um realizador belga que viu o filme disse-me ter ficado perturbado como em poucos filmes e ter sentido que o cinema podia começar de novo. Essa ideia de recomeçar é sempre estimulante.
Acho que é como quando apareceram as câmaras de vídeo e de repente houve uma democratização da produção de cinema, mas isso não trouxe necessariamente muito mais bons filmes, não é? Ou seja, o facto de todos poderem escrever um poema não quer dizer que haja milhões de poemas bons. O mesmo se passa cada vez que aparece mais uma tecnologia.
A verdade é que cada vez que aparece um suporte novo não existe uma percentagem assim tão grande de filmes interessantes, pelo menos do meu ponto de vista. Passou-se o mesmo com o 3D e se formos a ver filmes feitos com câmaras de formato amador, tenho a mesma câmara há 15 anos. Só quando vou a filmagens de grande orçamento é que uso câmaras diferentes.
Portanto, estou sempre disponível para jogar com os pequenos formatos porque são os de produção independente. Neste caso com um orçamento de um documentário. Claro que ultrapassámos o orçamento porque o filme demorou dois anos a fazer.
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