25 Mai 2019 19:12

De que se faz uma Palma de Ouro?

De muitos factores, por certo, a começar pelas singularidades dos membros do júri (naturalmente, e salutarmente, diferentes de ano para ano). Haverá motivações temáticas, questões narrativas, riscos de experimentação… E também, não o recalquemos, componentes políticas.
Na competição de Cannes/2019, o filme de Elia Suleiman, "It Must Be Heaven" (à letra: ‘Deve ser o céu" ou "Isto deve ser o céu") tem todas as condições para ser a grande Palma de Ouro política de 2019. Porquê? Porque nele se reflecte a tragédia suspensa do país que os palestinianos são enquanto povo, mas que não têm em forma de entidade política.
Em qualquer caso, importa introduzir um factor relativo em qualquer possível especulação em torno de tal questão: o que confere uma invulgar força simbólica a "It Must Be Heaven" não é a sua carga política (suscitando legítimas diferenças de leitura), mas sim, de modo decisivo, a sua especificidade cinematográfica.
Lembremos que a obra de Suleiman — por exemplo, "Intervenção Divina" (2002) ou "O Tempo que Resta" (2009) — é, toda ela, um sistema de variações sobre a Palestina como não-lugar, quer dizer, como entidade nomeável, mas impossível de mostrar (entenda-se: mostrar cinematograficamente).
O que confere a Suleiman um invulgar apelo universal está muito para além de qualquer lógica panfletária. Porquê? Porque o seu cinema existe, antes de tudo o mais, como paisagem visceralmente burlesca, a ponto de a sua própria presença enquanto actor nos remeter para as memórias frondosas de Buster Keaton (1895-1966).
Em "It Must Be Heaven", Suleiman instala um divertido jogo de espelhos: ele assume a sua própria personagem de cineasta à procura de concretizar um projecto que, em última instância, se confunde com o filme que estamos a ver. E tudo isso através de cenas que desafiam qualquer rótulo convencional.
Daí que a ficção se abra a todas as possibilidades narrativas. Por exemplo, há uma cena em que Suleiman escreve na companhia de um obstinado passarinho que quer ir para cima do teclado do seu computador…
Noutra cena, Paris parece um imenso deserto onde emergem sinais de bizarro irrealismo… Noutra ainda, também em espaços parisienses, um anjo com a bandeira da Palestina foge de um grupo de polícias, enquanto na banda sonora escutamos a canção "Darkness", de Leonard Cohen [I got no future, /
I know my days are few /
The present’s not that pleasant /
Just a lot of things to do /
I thought the past would last me /
But the darkness got that too
].
Suleiman é um caso raro de invenção visual e especulação filosófica, como se ele próprio se sentisse como um exilado no interior do seu corpo. A dimensão política confunde-se, enfim, com uma radical solidão.
  • cinemaxeditor
  • 25 Mai 2019 19:12

+ conteúdos