A história real de mulheres violentadas pelos homens de uma comunidade menonita na Bolívia, é contada no livro da canadiana Miriam Toews, que chega ao cinema pela mão da realizadora Sarah Polley, que ouvimos num Q&A no Festival de Cinema de Nova Iorque.
Sarah Polley já conhecia o livro que ficciona a história destas mulheres drogadas e violadas pelos homens em seu redor entre 2005 e 2009. Os crimes foram atribuídos pelos homens à femininaimaginação fértil. A solução encontrada foi a única possível numa comunidade profundamente conservadora e religiosa como é a menonita: o perdão que garante a entrada no Reino de Deus.
A proposta para levar o caso ao cinema partiu da actriz Frances McDormand que, além de um pequeno papel, assegura a produção do filme. Sarah Polley aceitou o desafio por considerar que a história real traz interrogações mais universais – “Senti-me atraída por questões como a fé, comunidade, democracia, reparação, perdão e cicatrização. Achei que era uma forma pouco usual de abordar tantas coisas. Parecia-me uma espécie de fábula que permitia falar sobre assuntos que eram aparentemente difíceis quando o livro saiu.”
Quando os homens abandonam a comunidade para dar oportunidade às mulheres de reflectirem sobre o perdão, elas decidem questionar a sua condição de vítimas e reúnem-se para decidir entre três opções: nada fazer, ficar e lutar, partir.
Perante as diferentes formas como cada uma encara o trauma da violência, a solução passa por debater o futuro e fazer uma votação. Na comunidade menonita as mulheres não aprendem a ler ou escrever, nem têm qualquer contacto com o mundo exterior. Por isso, o simples acto de decidir, é um processo de descoberta – “O que acho interessante no livro e também no filme, é o exemplo de como deve ser um processo verdadeiramente democrático (…) Estas mulheres sabem que o mundo em que vivem é destrutivo e perigoso e tem de mudar. Para que isso aconteça, têm de arranjar maneira de falar e ouvir, mesmo que não queiram.”
Sarah Polley partiu do caso real para ficcionar o debate que dá uma dimensão mais universal ao filme, atravessado por questões como a fé, o poder ou a vingança. Mas também o perdão, que pode ser entendido como permissão – “Tivemos uma conversa entre nós, em que falámos de experiências de abuso doméstico (…) Alguém se apercebeu que na altura, perdoar sempre o companheiro foi um acto mal interpretado (…) Acho que o perdão tem muitas nuances, é complicado e delicado e temos de avaliar com cuidado. Porque quando o perigo ainda é real, o perdão pode ser interpretado como permissão.”
No filme, as mulheres menonitas são retratadas à luz destes acontecimentos, mas a comunidade nunca é referida, por opção da realizadora que quis respeitar as crenças da comunidade e destas mulheres subjugadas e forçadas a um contexto de violência que subsiste sem consequências.
Apesar dos relatos difíceis e traumáticos o filme nunca mostra a violência, mas o que daí resulta e que pode ser a vivência de qualquer vitima em qualquer parte – “Não fazia sentido para mim mostrar as agressões. Fazia sentido mostrar o momento a seguir, que acho que é importante nestes casos, em que o trauma torna impossível pensar nos detalhes, há uma espécie de apagão. Isso torna-se problemático para muitas mulheres falarem quando lhes pedem que se lembrem de pequenos detalhes. Interessava-me o que acontece à memória a seguir ao trauma, nos momentos logo a seguir, que parecem mais importante que as cenas de agressão.”
Candidato derrotado ao Oscar de melhor filme, acabou por ganhar a estatueta para melhor argumento adaptado. “A Voz das Mulheres” mantém a estrutura do livro, em diálogos onde sobressai o talento de um conjunto de actrizes que atravessam gerações e onde se destacam as presenças de Rooney Mara, Claire Foy, ou Jessie Buckley, que dão voz ao que antes foi, o silêncio das mulheres.