6 Out 2019 12:18
A versão sombria, de laivos neo-realistas e bastante violenta da personagem "Joker", um dos vilões mais conhecidos do universo narrativo do super-herói Batman, agitou a sociedade norte-americana com críticas e receios de que o filme possa inspirar uma nova onda de incidentes com armas de fogo em locais públicos.
Atividade na comunidade Incel – denominação atribuída a uma subcultura composta por homens brancos com dificuldade em relacionar-se com mulheres – está a ser vigiada pelo FBI. Indivíduos com perfis que correspondem ao destes "celibatários involuntários" foram responsáveis por vários atentados com armas de fogo nos EUA. Um desses atentados, em 2012, numa sala de cinema em Aurora, no Colorado, durante uma sessão de "O Cavaleiro das Trevas Renasce", resultou em 12 mortos.
Em resposta aos receios, as forças-armadas norte-americanas emitiram um memorando a alertar os militares para a possibilidade de novos incidentes do mesmo género e aconselharam precauções. Por seu lado, as polícias de Nova Iorque e Los Angeles, anunciaram presença reforçada nos locais onde "Joker" estiver a ser exibido.
O filme de Todd Philips, o mesmo realizador da trilogia "A Ressaca", propõe uma reconstrução das origens do Joker, com Arthur Fleck, um solitário perturbado entre a multidão da Gotham City em crise durante o início dos anos 80, uma realidade inspirada na Nova Iorque do mesmo período vista, por exemplo, no "Taxi Driver", de Martin Scorsese.
Diante das ruas sujas e carruagens de metro grafitadas, numa cidade hostil, dividida e empobrecida, Arthur tenta fazer os outros rir. Trabalha como palhaço em pequenos números, à porta de lojas, ou em hospitais, e mantém o sonho irreal de uma carreira na comédia a solo. Vive com a mãe, também ela doente e atormentada. Ao ser agredido e humilhado por adolescentes e executivos embriagados, ou provocado pelos colegas palhaços, Arthur começa a sentir-se progressivamente mais desajustado e amargo, numa espiral que terminará em caos e tragédia.
"Joker" mereceu o aplauso de muitos no Festival de Veneza, onde acabou por ganhar o principal prémio, o Leão de Ouro, mas provocou também reações de rejeição, medo e críticas profundas à alegada glorificação de alguém com uma doença mental profunda que procura escape na violência contra os outros.
A propósito do tema, representantes de seis vítimas do tiroteio em Aurora escreveram uma carta aberta à Warner Bros. pedindo maior pressão junto dos legisladores para o aumento do controlo sobre a venda e posse de armas.
Para a Warner Bros. que co-produz e distribui o filme, "a violência com armas na nossa sociedade é uma questão crítica", lê-se numa declaração. O estúdio afirma a sua "mais profunda simpatia a todas as vítimas e famílias afetadas por essas tragédias" e acrescenta que o estúdio "tem um longo historial de doações a vítimas de violência, incluindo as de Aurora". Na mesma nota refere que a Warner Bros. "se juntou a outros líderes empresariais para incentivar os responsáveis políticos a aprovarem legislação que lide com essa epidemia".
Quanto ao filme em si, a Warner Bros. defende que "uma das funções da narrativa é provocar conversas difíceis sobre questões complexas" e recusa a glorificação da personagem Joker. "Que fique claro: nem a personagem fictícia Joker, nem o filme, é um endosso de qualquer tipo de violência no mundo real. Não é a intenção do filme, dos cineastas, ou do estúdio afirmar essa personagem como um herói", termina o comunicado.
O protagonista, Joaquin Phoenix, aceita o facto de que o seu Arthur Fleck/Joker possa ser um incómodo para muita gente mas, durante uma entrevista ao IndieWire afirma: "É isso mesmo que é bom. Estamos a falar de alguém que não distingue o bem do mal". E acrescenta que "Se provocamos desconforto a alguém, não nos podemos censurar. As pessoas falam sobre isso porque se importam com o facto. Pode perturbá-las, mas espero que também seja porque se importam."
Todd Philips, o realizador, nega irresponsabilidade no retrato do vilão. Ao Variety questionou, já esta semana: "Não será algo bom retirar aquele ar de desenhos animados que nos torna indiferentes à violência?" e prossegue "fiquei um pouco surpreendido por a discussão ter caminhado nessa direção, que o filme parece irresponsável porque, para mim, parece-me bastante responsável dar-lhe um tom real e torná-lo tão pesado."