

LONGE DA ESTRADA: memórias de Gaugin perto da arte, longe do exotismo
Os realizadores Hugo Vieira da Silva e Paulo Milhomens falam de como foi revisitar a trajetória de Paul Gauguin na Polinésia Francesa sem a presença física do pintor, mas através do olhar do escritor e explorador Victor Segalen. Filmado no Taiti com um elenco local, "Longe da Estrada" questiona o exotismo, a arte e como interpretamos a história.
“Longe da Estrada” acompanha os passos do pintor Paul Gauguin nas ilhas de Tahiti. A leitura do livro de banda desenhada de Maximilien Leroy e Christophe Gaultier, reforçou a ideia que o cineasta Hugo Vieira da Silva tinha de fazer um filme que reunisse os temas do comunalismo e da arte:
Sou por uma ideia de dessacralização dos artistas, de procura de outras portas de entrada, de outras poéticas e, se calhar, também de criar a minha própria poética através do olhar do outro.
Fiz vários filmes sobre artistas portugueses, é sempre um tema que me ficou. Portanto, entrelacei esses temas porque encontrei um livro de banda desenhada, “Loin de la Route”, e, de repente, vi que ali confluíam uma série de temas que me interessavam. A questão colonial, por um lado, e, sobretudo, como se relacionou com a questão colonial.
O Gauguin é muito interessante porque incorpora estas questões. É um europeu da época do exotismo, tem este gesto de sair para o que na altura era idealizado como desconhecido e produzir arte nesse lugar. Isso levanta muitas questões e levantou na época. Distúrbios na sociedade local. O que faz aqui um artista…
Portanto, há milhares de questões ligadas que têm a ver com a forma como recebemos a arte e como a interpretamos durante o século XX.
Victor Segalen, médico da marinha francesa que no início do século XX foi à Polinésia após a morte de Gauguin, foi também uma descoberta para o realizador Hugo Vieira da Silva. É uma das personagens principais de “Longe da Estrada”:
A banda desenhada já tinha a figura do Victor Segalen, uma personagem complexa e rica – poeta, artista, médico, antropólogo, interessado na descoberta do outro.
Tendo como ponto de partida este episódio do Gauguin e viagens que ele faz, o Segalen vai produzir um ensaio que é justamente uma crítica ao exotismo e isso interessou-me de sobre maneira.
De repente, a forma como se produzem estas dinâmicas, mesmo pós-mortem, entre um jovem pensador, poeta, artista, e o Gauguin, também artista – um muito mais jovem, o outro mais velho, levou-me a querer fazer o filme, e a centrá-lo na perspetiva do Segalen, que pode ser também o nosso ponto de vista como espectadores.
“Gauguin, que é o centro do filme, está sempre presente, mas como um fantasma.”
Num filme sobre Paul Gauguin, a ausência da personagem física do pintor foi intencional. O cineasta Hugo Vieira da Silva dirige o foco para a obra artística e quer dar liberdade à imaginação de quem vê o filme:
A estratégia do filme é muito a de construir a partir de um espaço que é sugerido. A partir da ausência, produzir o corpo do Gauguin, refletir sobre as pinturas do Gauguin. Existe uma tela no filme que cada um pode compor com os elementos que vamos sugerindo.
É minha convicção de que o que mais importa no Gauguin não são as pequenas histórias à volta dele, mas a obra artística. Temos um Gauguin não exótico e, portanto, essa tela permite a cada um fazer as suas próprias construções.
“… as pessoas entregaram-se ao filme, deram-nos tudo.”
Na realização, Hugo Vieira da Silva juntou-se a Paulo Milhomens, o cineasta destaca no filme a viagem de Victor Segalen, no rasto de Paulo Gauguin e os textos que escreveu. Há uma verdade histórica nas personagens em “Longe da Estrada”:
O fascinante no guião construído pelo Hugo é a capacidade de estarmos à procura de uma viagem com várias dimensões. Uma viagem também à procura de um fantasma.
A personagem Gauguin, que é o centro do filme, está sempre presente, mas como um fantasma. Isso tem a ver com a realidade quase documental do guião. O Hugo fez uma grande investigação e muitas das personagens que estão figuradas no filme têm uma realidade histórica.
“Longe da Estrada” foi rodado na Polinésia Francesa. Conta com a participação e dos habitantes das ilhas de Taiti, o que enriquece o filme. Paulo Milhomens ficou fascinado pela beleza do local, mas evitou fazer filmagens em locais turísticos:
É absolutamente fascinante a Polinésia Francesa, um grande conjunto de arquipélagos com distâncias enormes entre ilhas. E, claro, a beleza das ilhas provoca uma comoção.
De algum modo, a luta foi também contrariar o desejo quase decorativo que aquele local tem. Acho que o caminho de construção do filme, para além dessa ideia de viajar pelo espaço, e nós filmamos em muitos décores, muitos sítios diferentes, é outra coisa que vai compondo o filme, que são as várias personagens. E aí foi um encontro com as pessoas.
A maioria dos atores do filme vivem e trabalham no Taiti. Grande parte não é sequer profissional. O trabalho com essas pessoas foi a chave para ultrapassar uma espécie de relação quase decorativa, que acho que o filme não tem.
O elenco é formado por nove atores que assumem diferentes papéis. Três são atores profissionais franceses, entre eles Antoine de Foucauld, que interpreta a personagem principal, num filme que exige ser falado na língua do local:
A língua do filme tem que ser francês e marquesino, a língua falada nas Ilhas Marquesas. Em relação a Antoine de Foucauld, que é, digamos, a chave do filme, é o nosso Vítor Segalen. Ele sofreu uma espécie de transformação física impressionante, porque acho que se tornou fisicamente muito parecido com a personagem histórica.
Ao contrário do que estávamos a esperar, o Antoine tinha uma memória daqueles sítios, esteve lá dois anos, porque o pai, como o Vítor Segalen, era militar e esteve lá colocado.
Depois, trabalhar com as pessoas de lá, ensaiar com as pessoas que fazem personagens muito importantes no filme. A Kalanie Salmon, que é a Sara, tem um papel muito forte. Não é atriz, é professora de ginástica aeróbica, mas as pessoas entregaram-se ao filme, deram-nos tudo. O Tioka, o Jean Ihopu, é agricultor e é das Marquesas. É um marquesino com muito orgulho, as suas tatuagens são o símbolo da sua identidade de marquesino.
Paulo Milhomens revela que os habitantes das ilhas de Taiti ficaram surpreendidos pelo interesse de cineastas portugueses:
Uma parte da equipa foi daqui de Portugal, e outra parte era de lá, técnicos do cinema de Taiti. Ouvi perguntar várias vezes “mas porque é que vocês, portugueses, estão aqui a fazer um filme sobre um escritor francês e um pintor francês no Taiti?” Era surpreendente, creio. E eu explicava, por que não?
Paulo Milhomens dirigiu as filmagens nas ilhas de Taiti. Hugo Vieira da Silva, por motivos de saúde, acompanhou à distância. Antes da rodagem, fizeram ensaios na Áustria:
Idealizámos este workshop na Áustria, que seria uma zona criativa, para o Paulo poder entrar no processo. Chamei uma colega coreógrafa, chamámos os atores, tivemos o dia da fotografia, o assento de realização, o dia da produção em Viena.
Trabalhámos o filme, começamos a esquiçar algumas cenas já em Viena, com os atores principais do filme. Fomos para o parque em Viena, fazer de conta que estávamos no Taiti. Ficámos em contacto todos os dias. O filme foi sendo feito a duas mãos e a montagem foi feita por nós dois.
Paulo Milhomens lamenta que as salas de cinema estejam vazias:
Há uma desertificação do cinema português que está a acontecer agora de uma maneira rápida. Filmes importantes que estão a estrear estão a ter uma relação muito difícil com os espectadores. É um bocadinho trágico. Um filme português que esteve num festival muito importante no ano passado fez 900 espectadores. Para mim isso é qualquer coisa muito preocupante. Acho que nos devia alarmar esta relação que os filmes estão a ter com aquilo que é o seu objetivo.
“Longa da Estrada” estreia esta semana nas salas de cinema portuguesas.
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