

MISERICÓRDIA: intimidade e solidão na França rural
O realizador Alain Guiraudie regressa ao meio rural no sudoeste de França para explorar um mistério sobre fantasmas de infância, o peso da religião e os silêncios do desejo.
“Misericórdia” é um filme de suspense e mistério. Um policial num cenário rural durante o outono. O título, uma palavra latina que faz parte do léxico judaico-cristão, faz sentido para esta história, diz o realizador francês Alain Guiraudie:
O filme é uma mistura de fantasias pessoais, preocupações muito íntimas e coisas que lemos ou vimos. Voltei muito à mitologia cristã. Mesmo que não falemos muito de religião, a mitologia cristã está muito presente.
Não sou cristão, não acredito em Deus, mas, em criança, fui batizado, cresci no mundo da religião. O padre era uma figura importante na aldeia onde nasci. Depois de ter passado pelas tragédias astecas e gregas, finalmente, digo para mim próprio, a mitologia cristã está apenas há alguns anos de distância da nossa era.
Gosto de tudo o que tem a ver com a Bíblia, com os Evangelhos, até a prática e os rituais católicos me agradam imenso. E foi a isso a que regressei neste filme.
A personagem central é Jeremie, um jovem que regressa à aldeia da infância para o funeral do padeiro de quem foi aprendiz. A viúva convida-o a pernoitar na sua casa, a dormir no quarto do filho, o antigo colega de escola. Jeremie decide ficar mais alguns dias. Recorda e reencontra velhos amigos e conhece o padre da terra. A presença na aldeia leva a mudanças no comportamento dos habitantes. O ambiente de “Misericórdia” lembra as origens de Alain Guiraudie. A ação desenrola-se, mais uma, vez no seu local preferido, o sudoeste de França, terra natal do cineasta:
Estou a fazer o filme com a nostalgia que tenho dos anos 70, quando crescia, porque costumávamos falar muito com o pároco. Ainda me lembro do tempo em que o pároco era uma figura central na aldeia, em que todas as aldeias tinham um padre. Agora, já não há um padre em cada aldeia. Há poucos sacerdotes. Também todas as aldeias tinham um padeiro e um café. Faço um filme com essa estrutura, mas também o faço nos anos atuais.
É por isso que no filme coloco nas casas placas a dizer ‘vende-se’, porque quando descobri esta aldeia, antes do confinamento da Covid-19, há 15 anos, estava tudo à venda na aldeia. As casas estavam a cair e quando voltei para filmar encontrei uma aldeia diferente. Era impressionante a quantidade de carros e de casas em bom estado. Tinham sido remodeladas e não havia nenhuma à venda. Foi o regresso ao campo após o confinamento. As pessoas começaram outra vez a comprar casas de nos espaços rurais.
Alain Guiraudie faz questão de colocar na história a figura do pároco da aldeia. É a personagem preferida do público e é também a do realizador que reconhece projetar-se neste padre:
É a minha personagem preferida, e a personagem preferida de muita gente, muitas das personagens que imagino começam por ser eu próprio. Por isso, o padre tem muito mais para dizer, diz muitas coisas. Exprimo-me através dele. É uma encarnação espantosa do homossexual que nunca é amado. Um amor sem reciprocidade, sem retorno.
Podemos acrescentar a ideia de que para muitos homossexuais, do campo, ou das pequenas cidades, durante séculos, em última análise, a solução foi tornarem-se padres.
O tema da homossexualidade está presente. Para Alain Guiraudie, o desejo é um dos maiores mistérios da vida. Em “Misericórdia”, num jogo de silêncio, as personagens têm desejos não revelados, escondidos nas entrelinhas. O realizador revela que foi na montagem, com a omissão de pormenores sobre as personagens, que o filme se torna ainda mais enigmático:
É uma coisa que funciona bem no filme. Não tinha pensado nisso quando escrevia. Alguém está sempre a contar uma nova história, está sempre a inventar. Todos no filme estão também a inventar a sua própria história.
O filme convida o espectador a inventar as suas próprias histórias também. O espectador tem de estar no mesmo processo. Até o personagem principal está a fazer o trabalho de um argumentista, porque está sempre a reinventar a história à luz dos novos elementos que vão surgindo.
Quando estávamos a montar o filme, conseguimos remover elementos de informação. As sequências ligeiramente informativas, onde se dizia claramente que Jeremie tinha sido o aprendiz de padeiro e que falavam do passado, foram removidas. O filme funcionou ainda melhor ao remover esses elementos que, até aí, considerava cruciais.
Misericórdia tem co-produção portuguesa, da Rosa Filmes de Joaquim Sapinho. Alain Guiraudie está satisfeito com a parceria:
Os produtores foram procurar financiamento adicional. Por isso, fizemos uma produção conjunta com a Espanha e Portugal. Não conhecia a produtora do Joaquim Sapinho. Viemos a Portugal fazer a mistura de som. Grande parte do som foi feito por técnicos portugueses.
Em “Misericórdia”, o dia a dia de uma aldeia do interior é perturbado pelo regresso do jovem Jeremie. O papel é do ator Félix Kysyl:
É um personagem bastante perturbado. Anjo e demónio, tem uma parte de criança e outra muito adulta.
Cresceu nesta aldeia com as pessoas que vemos no filme e partiu para fazer a sua vida em Toulouse. Regressa após anos de ausência. Há muito tempo que não vê esta gente e que eles também não o veem a ele. Era aprendiz de padeiro e regressa para o funeral do antigo patrão. Regressa, vagueia muito pela terra e por esta região que reencontra.
A presença de alguém que se tornou um estranho à aldeia desperta sentimentos diferentes. A violência e o desejo estão latentes nas personagens. São muitas as dúvidas e a capacidade de saber perdoar é uma das questões que se coloca em “Misericórdia”, diz Félix Kysyl:
O filme é inspirado nas grandes tragédias e mitos, mas em termos de referências, não trabalhei muito em referências míticas e bíblicas.
A personagem de Jérémie transmite uma espécie de perturbação dos valores pré-estabelecidos. Põe em causa respostas em relação a uma certa moralidade da sociedade. Isso levanta questões sobre a misericórdia, a compreensão dos outros e a compreensão dos outros para com os seres humanos, de uma forma global.
Faz-nos questionar sobre as nossas ideias. Cada um pode perguntar a si próprio. Até onde estou disposto a perdoar? Porque no filme comete-se um erro enorme.
São de grande intensidade as relações que Jérémie estabelece com a mulher do padeiro, interpretada pela atriz Catherine Frot, e com o padre. Félix Kicil gosta em particular da cena no confessionário:
Há uma cena chamada a cena do confessionário. Digamos que é um padre numa igreja que me pede para o confessar, embora eu não seja padre, e ele seja. Quando li o guião pela primeira vez, achei que era uma cena maravilhosa. Trabalhei muito nela com o Jacques Develay, que interpreta o padre.
O mais engraçado é que nos entendemos facilmente. Encontramos o ritmo da cena, porque a escrita era muito clara. Todos os silêncios, todas as falas, já estavam na escrita. Por isso, só tínhamos de seguir a partitura, tal como fazem os músicos.
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