13 Jul 2021 1:58
"Tre Piani", três andares de um prédio de Roma… Uma noite, uma das habitantes sai de de casa sozinha: vai a caminho da maternidade, está quase a dar a luz… Porque vai sozinha? Não chegamos a ter tempo de concretizar a pergunta porque um carro aparece descoordenado, dá uma curva brusca, atropela uma outra mulher que ia a passar e arromba, literalmente, uma parede de vidro do rés do chão do prédio: os vizinhos que aparecem reconhecem ao volante um jovem que também habita no prédio…
Tudo isto resume (mal) os dois ou três minutos de abertura de "Tre Piani", o novo filme de Nanni Moretti presente na secção competitiva de Cannes. O autor de "O Quarto do Filho" (que, em 2001, lhe valeu a Palma de Ouro) é um encenador, tão discreto quanto sofisticado, destas convulsões — a estabilidade do quotidiano, quer em termos sociais, quer no plano moral, é uma aparência que se pode decompor numa fracção de segundo.
Poderá dizer-se que "Tre Piani" é um objecto de "temáticas" modernas e, de algum modo, na moda — da desagregação dos laços familiares à fragilidade dos sistemas de justiça (Nanni aparece também como actor, a interpretar um juiz). Mas nada disso basta para definir a pulsação interna de um filme austero em que cada detalhe participa no misto de estranheza, perturbação e esperança de toda a teia narrativa.
Porque Moretti é, afinal, isso mesmo: um grande narrador, mestre de uma complexidade formal e humana que não necessita de qualquer ostentação ou sublinhado. "Tre Piani" é, muito simplesmente, um dos filmes maiores, não apenas de Cannes 2021, mas de todo este ano da produção europeia.