9 Nov 2015 19:19
As sombras de "Cinema Paradiso", o clássico premiado com um Oscar, correm pela vida de António Feliciano, um enérgico homem de 75 anos, que teme poder vir a ser o último projecionista de cinema itinerante em Portugal.
"Se não sou o último, estou perto", diz Feliciano. "Este é um legado que vai acabar. Quando eu me for, o cinema itinerante será mencionado em artigos, mas apenas como uma memória."
Depois de seis décadas e quatro milhões de quilómetros de viagem para projetar quatro mil filmes em aldeias distantes de Portugal, Feliciano ainda não tem planos para se aposentar. Mas está conformado com o fato de que a Internet, a televisão digital e os monopólios na distribuição tornaram o seu ofício obsoleto.
Tal como Toto, o menino que faz amizade com o projecionista Alfredo no filme italiano de 1988, Feliciano também começou muito jovem, na década de 1950, ajudando um projecionista ambulante a anunciar o programa do fim de semana num alto-falante, na sua aldeia do Alentejo rural.
"O bicho do cinema", como ele lhe chama, cresceu e na adolescência já se tinha feito à estrada, ajudando a projetar filmes em salões de baile e praças de touros. Isso levou a uma carreira que nem a necessidade de ganhar a vida como guarda-livros interrompeu, combinando as semanas passadas num escritório de Lisboa com as projeções ao fim de semana.
A cerca de 200 km de Lisboa, Monforte é uma aldeia típica Alentejo – pitoresca, mas sonolenta, a sua população reduzida a três mil habitantes pelos problemas económicos e pela emigração.
No entanto, num domingo brilhante, a vila anima-se quando Feliciano se prepara para projetar um filme em homenagem a Domingos Peças, um projecionista local, que morreu em 2005 após 50 anos no negócio.
A Última Sessão?
"O nosso entretenimento era o cinema ambulante, não tínhamos mais nada, nem TV, nem rádio, éramos muito pobres", diz a residente Nazaré Alfaia, 71 anos. "Como não sei ler, não me lembro dos nomes dos filmes, mas eram aventuras, cowboys e cavalos", acrescenta, cercada por uma coleção de projetores antigos de Feliciano e por cartazes desbotados de westerns e musicais.
Artemisio Peças, o filho do projetista, lembra que "antes do filme, mostravam as notícias e foi no cinema que as pessoas viam Lisboa, as colónias, ou mesmo o mar, pela primeira vez".
Vestindo um casaco de trabalho azul com a palavra "Cinema", impressa na parte de trás, Feliciano passa uma hora em preparações e a certo ponto usa um martelo para alinhar o rolo do filme biográfico sobre Amália Rodrigues, a diva do fado.
"Este é um passeio de emoções imprevisíveis, nunca é fácil. O som deve ser bom, a imagem clara, o equipamento protegido para viajar. Sou como um trapezista sem rede", diz ele.
Mas não se arrepende: "Às vezes sinto que eu sou ‘o cinema’. Numa sessão aqui está a máquina, o ecrã, o público, todos concentrados, juntos, a rir, a chorar. E sem mim nada funciona… Emocionante. "
Feliciano parece mais jovem do que a sua idade e salpica a conversa com anedotas sobre a sua vida quase boémia. A expressão jovial só azeda quando lamenta não conseguir encontrar alguém que continue a tradição. "É uma pena que esta expressão cultural importante se perca e que, quando eu morrer, não haja ninguém para ir de aldeia em aldeia a mostrar um filme."