27 Dez 2024
É um capricho de distribuição que se reflete de forma muito positiva no balanço do ano. Em 2024, estrearam nos cinemas nacionais os filmes consagrados nas edições recentes dos festivais de Veneza e de Cannes, os mais recentes de Pedro Almodóvar, Sean Baker, Yorgos Lanthimos e Justine Triet.
A seleção do Cinemax inclui ainda os filmes de Jacques Audiard e Jonathan Glazer que receberam distinções no festival de Cannes e as obras dos portugueses Ico Costa, Gabriel Abrantes e Miguel Gomes.
ANATOMIA DE UMA QUEDA
Realização: Justine Triet
Com o filme ”Anatomia de uma Queda” a realizadora francesa Justine Triet tornou-se, em 2023, a terceira mulher a vencer a Palma de Ouro do Festival de Cannes.
O filme propõe um exercício sobre a percepção do real a partir da investigação de um crime e do julgamento do mesmo. No centro da história está um casal em que o marido aparece morto, a dúvida instala-se entre suicídio ou homicídio. A mulher torna-se suspeita e o filho de ambos, cego, terá de decidir de quem é a culpa.
Justine Triet propõe uma reflexão sobre a anatomia de um crime, de uma relação e das suspeitas sobre uma mulher que não cabe no habitual papel de vítima.
A atriz alemã Sandra Hüller, que também foi protagonista em “A Zona de Interesse”, é a suspeita que não cabe nas ideias pré-definidas sobre a condição frágil de uma recém-viúva. Aparenta ser forte, pode ser vista como manipuladora e pode ser mal entendida por quem julga o caso. Fica nas mãos da criança cega, interpretada pelo jovem ator luso-descendente Milo Machado Graner. Aqui reside a inteligência do argumento escrito por Justine Terrier, a meias com o marido, o também cineasta Arthur Arari. A verdade não está à vista, mas é preciso solucionar o caso. O filme de tribunal é, afinal, uma abordagem à percepção que temos da realidade.
Além da Palma de Ouro em Cannes, “Anatomia de uma Queda” chegou aos Óscares com cinco nomeações e triunfou na categoria de melhor argumento original. Antes, tinha sido consagrado nos César, atribuídos pela Academia de Cinema em França, nos quais conquistou seis prémios de um total de onze nomeações, incluindo melhor filme, melhor realizadora e melhor atriz.
ANORA
Realização: Sean Baker
À terceira passagem pelo Festival de Cannes, o realizador Sean Baker chegou à Palma de Ouro. “Anora” é uma mistura de drama e comédia e, à maneira de Sean Baker, desmonta a ideia de sonho americano.
Na história, Anora é uma bailarina exótica de Nova Iorque, contratada para passar uns dias com um jovem milionário russo. A personagem nasceu da pesquisa feita pelo realizador sobre o universo das trabalhadoras do sexo, que já tinha sido abordado em projetos anteriores. Uma bailarina que se prostitui e um rapaz sem noção das consequências e dos limites da conta bancária, protagonizam o divertido par romântico de “Anora”.
O filme traz à memória outro par, Richard Gere e Julia Roberts, no filme “Pretty Woman – Um Sonho de Mulher” que revisitou a história da Cinderela. Mas, ao contrário do filme de 1990, “Anora” propõe uma reflexão que Hollywood não está disponível para fazer.
A bailarina prostituta e o milionário acabam por casar-se em Las Vegas, mas a família do jovem russo aparece para impedir que a união se concretize. É o momento em que o conto de fadas se transforma em real e a história passa a ser sobre dinâmicas de poder.
Sean Baker cria uma ficção para evidenciar a distância que separa os que sonham com uma vida melhor dos que podem ter a vida que quiserem. “Anora” é comédia, mas é também uma visão realista da divisão de classes e da desajustada distribuição de riqueza.
O QUARTO AO LADO
Realização: Pedro Almodóvar
Homenageado com o Leão de Ouro pela Carreira em 2019, o espanhol Pedro Almodóvar conquistou finalmente um grande prémio, o Leão de Ouro, do Festival de Veneza. O filme, “O Quarto ao Lado”, fala do direito à escolha do momento da morte. E é um filme que vira uma página. É a primeira longa-metragem de Pedro Almodóvar, falada integralmente em inglês, depois de experiências como “A Voz Humana”, ou “Estranha Forma de Vida”, em formato curto.
Marta e Ingrid, Tilda Swinton e Julianne Moore, são duas amigas confrontadas com a morte que espreita a vida de uma delas, vítima de uma doença terminal.
“O Quarto ao Lado” é um filme sobre a possibilidade de escolher o momento da morte, mas é também sobre a vida, as escolhas, o amor que alimenta uma amizade capaz de resistir a tudo.
Pedro Almodóvar deixa um melodrama que parece confundir-se com a cultura espanhola e desenvolve um drama em torno de um tema difícil.
Filmou nos Estados Unidos, mas podia ter sido em outro lugar. Aqui o tema é universal e o foco do realizador, que tem uma filmografia recheada de mulheres, mantém-se intacto.
POBRES CRIATURAS
Realização: Yorgos Lanthimos
Foi o Leão de Ouro do Festival de Veneza em 2023. “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, é uma revisitação do clássico Frankenstein, em regsito cómico com contornos de horror. No centro da história está uma personagem feminina a tentar descobrir o seu lugar no mundo. O filme adapta ao cinema um livro do escritor britânico Alasdair Gray escrito na década de 90 do século passado e que se mantém atual.
A atriz Emma Stone, que participou na comédia provocadora “A Favorita”, volta ao cinema de Yorgos Lanthimos para ser Bella Baxter, uma jovem mulher submetida a uma experiência científica radical e que se comporta como uma criança no corpo de um adulto. Uma personagem ingénua e curiosa, sem qualquer tipo de filtro social, ou emocional, Bella Baxter quer crescer e conhecer, experimentar e descobrir.
O filme propõe uma viagem por vários lugares, entre os quais Lisboa, recriada em estúdio futurista, mas marcada por uma forte cultura popular, onde Bella fica rendida aos pastéis de nata e à voz de Carminho, que canta à janela numa ruela da cidade.
Uma mulher num tempo suspenso, criado por Yorgos Lantimos, num filme que fala também do nosso tempo. “Pobres Criaturas” é uma crítica à sociedade que estabelece regras de comportamento para homens e mulheres.
Uma releitura do clássico Frankenstein feita com humor e provocação.
EMILIA PÉREZ
Realização: Jacques Audiard
A partir do romance “Ecoute”, de Boris Razon, o realizador francês Jacques Audiard imaginou a história de um barão da droga, no México, que muda de sexo para escapar à justiça.
“Emília Pérez” parte da realidade violenta do México mas converte-se em musical com rasgos telenovelescos de comédia.
Karla Sofía Gascón, atriz trans espanhola, é a figura central da história, o vilão que se transforma em Emília Pérez. Zoe Saldaña, a advogada que o ajuda no processo, Selina Gomez, a viúva do traficante que muda de sexo e Adriana Paz, a viúva de uma vítima do narcotráfico.
O painel de quatro mulheres foi premiado no Festival de Cannes pelo conjunto de interpretações. As personagens que desempenham são apanhadas por circunstâncias, mas decidem dar luta e seguir em frente.
“Emília Pérez” é uma espécie de opereta onde desfilam temas pop e rock cantados pelo elenco em coreografias que impõem ritmo sem perturbar a narrativa. Experiência de cinema sem paralelo, esta ousadia chamou a atenção do Festival de Cannes onde venceu o prémio do júri e onde Jacques Audiard já foi premiado com os filmes “O Profeta” e “Dheepan” que conquistou a Palma de Ouro.
ZONA DE INTERESSE
Realização: Jonathan Glazer
“Zona de Interesse” é o título do livro de Martin Amis sobre o quotidiano da família do comandante Rudolf Hoss, que dirigiu o campo de concentração em Auschwitz durante o regime nazi.
O filme de Jonathan Glaser, que venceu o grande prémio do júri do Festival de Cannes, inspira-se muito livremente no livro e coloca em primeiro plano a normalidade de uma família que viveu feliz nas proximidades de um campo de concentração.
Na pesquisa para o filme, numa visita a Auschwitz, Jonathan Glazer descobriu o testemunho de um jardineiro que conheceu a família Hoss e que relatou factos sobre a vida do casal que se transformaram na ideia central do filme.
O filme aborda o Holocausto, mas centra-se no que se passava fora do campo de concentração. Não há cenas de violência, nem imagens das vítimas, há a consciência do que sabemos que está a acontecer, nós e a família Hoss, que só está preocupada em dar uma boa vida aos filhos.
Um filme desconcertante e incómodo sobre a apatia e a desumanidade que é possível atualizar até aos nossos dias.
O OURO E O MUNDO
Realização: Ico Costa
“O Ouro e o Mundo”, segunda longa-metragem de Ico Costa, é novamente passada em Moçambique, onde o realizador filmou várias curtas-metragens na última década. A partir da província de Inhambane, Ico Costa acompanha a história de um casal jovem que tem de se separar porque Domingos precisa de encontrar trabalho nas minas. Neuza fica para trás e esta é uma circunstância comum na vida de muitos jovens moçambicanos.
A partir da vida de um casal, Ico Costa reflete sobre os sonhos de uma juventude moçambicana que vislumbra outro futuro através da internet e está cansada de um poder que se instalou com a independência, mas que não oferece esperança e oportunidades.
Ico Costa, realizador que conhece bem a realidade de Moçambique, coloca no cinema as frustrações dos jovens daquele país que, de alguma forma, ajudam a compreender a resposta violenta nas recentes eleições.
No título do filme, o ouro simboliza a busca por um futuro e um mundo, a percepção de que os sonhos dos jovens moçambicanos são, afinal, muito semelhantes a muitos outros, em outras culturas e outras geografias. O filme foi feito com a população de Inhambane e as suas legítimas preocupações.
Venceu o prémio de melhor longa-metragem portuguesa do Festival Indie Lisboa.
A SEMENTE DO MAL
Realização: Gabriel Abrantes
É um caso raro no cinema português, um filme que joga com as regras do género do terror, pisca o olho à comédia e fala sobre família e identidade, genética e herança. Em “A Semente do Mal”, Gabriel Abrantes, um cineasta inquieto e que gosta de provocar, quis trabalhar um género que considera muito completo e, mais uma vez, surpreender o público.
Um jovem americano interpretado por Carlotto Cotta descobre que tem raízes em Portugal e viaja com a namorada para procurer a sua mãe e o irmão gémeo numa mansão em Trás-os-Montes, deparando-se com algo que não estava nos planos. Gabriel Abrantes usa o terror sobrenatural e psicológico para brincar com as regras do género e com as referências enquanto espectador.
Além de Carlotto Cotta, o elenco conta ainda com as participações de Alba Batista e de uma Anabela Moreira totalmente irreconhecível, mas a protagonizar alguns dos momentos mais bizarros do filme.
“A Semente do Mal” é a estreia de Gabriel Abranches num género que importa sublinhar no panorama português, onde o terror é praticamente ignorado.
CHALLENGERS
Realização: Luca Guadagnino
Um romance a três, vivido dentro e fora dos ‘courts’ de ténis, é a segunda incursão do italiano Luca Guadagnino por território americano, depois de “Ossos e Tudo”, com o qual venceu o prémio de melhor realizador no Festival de Veneza.
Em “Challengers”, as personagens, interpretadas por Zendaya, Mike Feist e Josh O’Connor, competem por quase tudo na vida.
Nas mãos de Luca Guadagnino, as tensões e impulsos entre as personagens e a relação que estabelecem entre si são fundamentais para que o filme resulte e afirme um verdadeiro triângulo em todos os sentidos.
O universo do desporto ganha uma nova dimensão. Em muitos momentos, as metáforas sugeridas pelo subtexto acentuam a ideia fundamental de que esta não é de todo uma história sobre jogadores de ténis.
Luca Guadagnino propõe uma abordagem dinâmica dividida entre passos rápidos e curtos e longas tiradas em câmera lenta, num jogo permanente entre os vários ângulos da história e desta relação a três. “Challengers” é um filme certeiro e confiante, sedutor e divertido, uma boa surpresa no género da comédia romântica.
MEGALOPOLIS
Realização: Francis Ford Coppola
“Megalopolis” começou a ser imaginado por Francis Ford Coppola há quase cinquenta anos e foi sendo adiado sucessivamente ao longo da carreira do cineasta. É, em todos os aspectos, um filme de excesso, pelo tempo envolvido, o dinheiro gasto, a proposta estética, a narrativa e por ser uma tremenda ousadia.
Apresentá-lo, finalmente, no Festival de Cannes, aos 85 anos, foi um alívio para o realizador.
A cidade de Nova Iorque é a Nova Roma, neste filme sobre a civilização humana que, afinal de contas, parece muito próximo do nosso tempo. Adam Driver intepreta César, um arquiteto revolucionário que sonha construir uma cidade mais sustentável e harmoniosa. A megalopolis do título tem de enfrentar os poderosos que respondem ao dinheiro e aos interesses instalados.
O filme pode ser interpretado como uma visão mais pessoal e uma metáfora de Francis Ford Coppola sobre a conservadora indústria do cinema americano e o papel da arte. “Megalopolis” tem a ambição de juntar passado e presente e apontar ao futuro. É uma obra extravagante, contra tudo e contra todos, paga com 120 milhões de dólares da fortuna pessoal do realizador, que já fez o mesmo em projetos como “Do Fundo do Coração”, “Apocalypse Now”, ou “Drácula”.
Inigualável, “Megalopolis” propõe uma reflexão sobre a sustentabilidade e o que ainda há de vir, mas ancorado em algumas ideias estéticas que podem parecer ultrapassadas e até mesmo de mau gosto. Uma combinação bizarra de drama, filosofia, humor e ‘glamour’ que talvez necessite de mais tempo para ser totalmente compreendida e apreciada.
MOMENTO MARCANTE DO CINEMA NACIONAL EM 2024
GRAND TOUR
Realização: Miguel Gomes
2024 foi o ano em que o cinema português chegou ao palmarés do Festival de Cannes com o filme “Grand Tour”, de Miguel Gomes, prémio de melhor realizador. Nos agradecimentos, lembrou Manuel de Oliveira e César Monteiro, símbolos de uma herança de cinema e de uma marca muito original. Miguel Gomes faz sobressair essa marca em “Grand Tour”, filme contado a partir de um livro de viagens e rodado parcialmente em estúdio.
Gonçalo Waddington é um noivo em fuga pela Ásia, Crista Alfaiate, a mulher que o impede de fugir. Os dois são retratados a partir de um tempo que se cruza com o nosso tempo numa distância de mais de 100 anos, um filme de risco que não cabe nas definições de género e que é difícil de ser comparado a qualquer outro.
“Grand Tour” colocou alta a fasquia do cinema português ao sair de Cannes com uma palma para o realizador Miguel Gomes e dali para os circuitos de exibição de vários países.