1 Jan 2017 22:03
A seleção final que propomos permite olhar para as principais tendências do ano cinematográfico. Entre os dez mais marcantes surgem um documentário, um filme português, uma animação adulta, uma biografia de Oliver Stone sobre um figura controversa, e um remake de um clássico da Disney que contribuiu para o ano mais rentável do estúdio.
Não ficamos indiferentes ao regresso de Mel Gibson e de Paul Verhoeven, à consagração de Brie Larson e ao significado da Palma de Ouro atribuída a Ken Loach.
EIS O ADMIRÁVEL MUNDO EM REDE
Werner Herzog
Quase todos falamos sobre os recursos mais ou menos fascinantes que a Internet colocou ao nosso dispor. Mas nem sempre reflectimos sobre o seu efeito nos nossos modos de viver e pensar. O filme de Werner Herzog é sobre isso mesmo, sobre o modo como o mundo em rede, "O Admirável Mundo em Rede", é um mundo realmente novo, tecido de maravilhas e inquietações, revelações e medos.
No contexto português, foi também o cartão de visita de uma nova distribuidora, a Cinema Bold, afinal empenhada numa questão que envolve todos os agentes do mercado — como variar a oferta, reconquistando o público, e em particular, as gerações mais jovens.
CARTAS DA GUERRA
Ivo M. Ferreira
O cinema português não é melhor nem pior por abordar questões mais concretas ou abstractas. Mas é um facto que sentimos que há um défice na sua relação com as memórias da Guerra Colonial. "Cartas da Guerra" apostou na reconfiguração dessas memórias a partir das cartas escritas por António Lobo Antunes a sua mulher, numa comissão de serviço em Angola — é um filme intenso e delicado, vibrante e comovente, capaz de superar clichés morais, ideológicos e políticos.
O realizador Ivo Ferreira conseguiu reencontrar as mágoas, e também a beleza, de um romantismo genuinamente português.
ANOMALISA
Charlie Kaufman
Talvez haja uma maneira simples e sugestiva de definir ANOMALISA: é o filme mais inclassificável estreado em 2016. Nele encontramos temas visceralmente adultos, desde a decomposição do universo conjugal até à solidão favorecida pela nossa sociedade dita de comunicação. O certo é que nunca tínhamos visto tais temas tratados num filme de animação, mais exactamente, numa história contada através de bonequinhos, animados pelo método de stop-motion. Charlie Kaufman e Duke Johnson são os autores de uma proeza que, afinal, nos faz perceber que as fronteiras dos temas e das técnicas são sempre instáveis, fascinantemente instáveis.
O LIVRO DA SELVA
Jon Favreau
Hoje em dia, em muitos contextos, a expressão “filme de efeitos especiais” tornou-se uma solução de facilidade para não dizer coisa nenhuma. De facto, os ‘efeitos especiais’ não são bons nem maus — apenas instrumentos de trabalho que muitos utilizam de forma banal, poucos de maneira realmente inventiva.
"O Livro da Selva", de Jon Favreau, é um caso brilhante de concepção de todo um universo visual apoiado em sofisticadas formas de manipulação das imagens. A história do pequeno Mowgli é contada com um Mowgli humano, mas tudo o resto, em particular os animais selvagens, foi fabricado por computadores — a proeza é tanto mais significativa quanto contribuiu para o facto de os estúdios Disney terem conseguido, em 2016, o seu ano mais rentável de sempre.
ELA
Paul Verhoeven
No Festival de Cannes, houve um certo desencanto pelo facto de Isabelle Huppert não ter ganho o prémio de interpretação feminina. Agora, pode bem acontecer que ela chegue a uma nomeação para o Oscar de melhor actriz. Enfim, aconteça o que acontecer, uma coisa é certa: a sua interpretação de uma mulher que é violada na sua própria casa, arquitectando todo um processo prático e mental de reconquista da sua própria identidade, evolui como um jogo do gato e do rato em que aquilo que se discute é, em última instância, a visão moral do próprio espectador — foi, além do mais, um filme de regresso, de espectacular regresso, desse “holandês voador” que é o realizador Paul Verhoeven.
EU, DANIEL BLAKE
Ken Loach
Provavelmente, muitos dos que acompanharam o Festival de Cannes não consideraram o filme de Ken Loach como o melhor do certame. O certo é que quando o júri presidido por George Miller atribuiu a Palma de Ouro a "Eu, Daniel Blake" gerou-se um reconhecimento especial, uma espécie de efeito de comunhão — estamos, de facto, perante uma narrativa actualíssima, expondo as contradições sociais e, em particular, as insuficiências da chamada segurança social.
Isto sem esquecer que Ken Loach se mantém fiel ao mais austero realismo — e é um facto: os nossos tempos conturbados precisam de olhares realistas.
O FILHO DE SAÚL
Lázlo Nemes
Sabemos que, para além do peso inegável da história, a herança do Holocausto envolve um drama especificamente cinematográfico. Trata-se de saber, afinal, como filmar o horror da máquina de repressão nazi e, em particular, a vida e a morte nos campos de concentração. O filme húngaro "O Filho de Saúl", de László Nemes, ficou como um momento fulcral na evolução desse drama — nele encontramos uma odisseia de desesperada sobrevivência e também uma obstinada afirmação de valores humanistas. Em 2015, em Cannes, já tinha ganhou o Grande Prémio; este ano, arrebatou o Oscar de melhor filme estrangeiro.
O HERÓI DE HACKSAW RIDGE
Mel Gibson
Na história do cinema americano das últimas três décadas, Mel Gibson ocupa o lugar paradoxal de uma estrela capaz de mobilizar tudo e todos, mesmo quando os seus pressupostos são francamente discutíveis. "O Herói de Hacksaw Ridge" correspondeu a um regresso em grande — afinal, o homem marcado por uma avalancha de dramas pessoais e problemas profissionais é capaz de abordar um tema tão delicado como seja a experiência, na batalha de Okinawa, de um soldado que foi um objector de consciência e nunca disparou um tiro.
Além do mais, Mel Gibson deu uma oportunidade muito especial a um actor que, por certo, vai continuar nas bocas do mundo — é ele o brilhante Andrew Garfield.
QUARTO
Lenny Abrahamson
Como filmar o exílio interior de uma mãe e do seu filho, ambos raptados e sujeitos a uma clausura de vários anos num pequeno quarto? O filme chama-se, precisamente, "Quarto", porque o espaço claustrofóbico é, por assim dizer, a primeira personagem. O realizador Lenny Abrahamson conseguiu a proeza de filmar tal monstruosidade como a saga belíssima de dois seres humanos à procura da sua liberdade.
No papel da criança, Jacob Trambley é admirável, enquanto na personagem da mãe Brie Larson tem uma daquelas performances que só podemos definir como merecedoras de um Oscar — e foi isso mesmo que aconteceu: o seu Oscar de melhor actriz foi, talvez, o mais consensual do ano.
SNOWDEN
Oliver Stone
Podemos concordar ou discordar dos pontos de vista políticos de Oliver Stone. O certo é que isso não nos impede de reconhecer que, no plano cinematográfico, ele é alguém que está sempre disposto a arriscar as imagens e os sons no sentido de discutir as clivagens mais fundas da sociedade americana.
Assim voltou a acontecer com o seu retrato de Edward Snowden, expondo as convulsões envolvidas na revelação de dados relacionados com o controle da informação pelos serviços secretos dos EUA — se é verdade que o cinema continua a ser uma arma singular para nos ajudar a lidar com a complexidade do mundo contemporâneo. "Snowden" foi, em 2016, um dos mais genuínos e estimulantes exemplos.