1 Jan 2019 16:12
A situação do cinema português permanece frágil, de algum modo agravada pelas lógicas de um mercado com muitos desequilíbrios de distribuição e exibição. Seja como for, não se pode dizer que, ao longo de 2018, lhe tenha faltado diversidade. O filme de Teresa Villaverde, COLO, consegue a proeza de fazer o retrato de uma família muito particular, atingida por dramas ligados à crise económica, ao mesmo tempo, inseparavelmente, propondo uma visão actualíssima de um tempo urbano de crescente esvaziamento humano. Encontramos aqui os sinais de um desejo realista que, mesmo sendo eminentemente português, atravessa, hoje em dia, muitos contextos criativos do cinema.
É bem verdade que a história da animação nos últimos vinte anos não pode ser contada sem sublinharmos a importância de entidades como os estúdios Disney, Pixar ou DreamWorks. Mas há as margens de tudo isso. E é nessa zona bizarra, desconcertante e também fascinante, que surge o trabalho de Wes Anderson. ILHA DOS CÃES conta a história dramática de um rapaz e do seu cão, num Japão de ficção científica. Fabricado através de bonequinhos movidos pela técnica de ‘stop motion’, este é um objecto tão inclassificável quanto sedutor que nos recorda que nem toda a animação tem de depender de figurinhas digitais — os resultados têm tanto de aventura infantil como de conto filosófico para adultos.
Tantas vezes se disse que Spike Lee é um retratista da condição afro-americana no seio dos Estados Unidos que nos esquecemos que, de facto, a sua obra reflecte os traumas de uma história nacional desenhada a partir de personagens de todas as origens. Daqui a algumas décadas, quando se fizer o balanço da produção cinematográfica americana na era de Donald Trump, não tenhamos dúvidas que este filme de Spike Lee vai ser citado como uma referência essencial. Ironicamente e, afinal, pedagogicamente, a narrativa de BLACKKKLANSMAN chega ao tempo presente através de memórias da década de 1970, com um polícia negro a investigar as práticas racistas do Ku Klux Klan. Desse ziguezague nasce uma dialéctica temática e estética que questiona, directamente, amargamente, a América revista no espelho dos seus traumas e fantasmas — a provar, enfim, que nem só de super-heróis vive o cinema americano.
Quem se esqueceu do lugar central de Paul Schrader na história do cinema americano das últimos cinco décadas? Afinal de contas, ele escreveu o argumento de "Taxi Driver" e realizou filmes como "American Gigolo", "A Felina" ou "Mishima". Pois bem, Scharder já não tem os favores dos grandes estúdios, mas continua a fazer filmes de pequenos orçamentos e grandes ideias. NO CORAÇÃO DA ESCURIDÃO, centrado num padre, interpretado por Ethan Hawke, cuja fé parece vacilar, é o retrato íntimo de uma América profunda, marcada pela desagregação dos valores sociais e assombrada pelo medo, por esse medo que nasce do esvaziamento das relações humanas — na sua contundência temática, e também na sua depuração formal, NO CORAÇÃO DA ESCURIDÃO mostra que Schrader não desistiu de contar histórias do seu país, histórias que são também parábolas universais.
Eis o mais improvável dos filmes. Desde logo, porque é um remake de um clássico, ou melhor, da história clássica do nascimento de uma estrela que já tinha sido filmada três vezes (nas décadas de 30, 50 e 70). Depois, porque a herdeira do papel central já assumido por Janet Gaynor, Judy Garland e Barbra Streisand é nada mais nada menos que Lady Gaga. Enfim, porque na realização surge aquele que é também o protagonista masculino: Bradley Cooper. Improvável, sem dúvida. O certo é que, em 2018, ASSIM NASCE UMA ESTRELA foi um dos símbolos mais perfeitos de uma ideia de cinema em que a energia do espectáculo renasce através de uma inteligente reactualização de matrizes melodramáticas — além do mais, podemos apostar que "Shallow", magnífico dueto de Cooper e Lady Gaga, vai ganhar o Oscar de melhor canção.
Quando falamos de Agnès Varda, devemos penalizar a nossa memória cinéfila. De facto, ela (que celebrou 90 anos em 2018) foi uma presença importante no movimento da Nova Vaga francesa e nem sempre a evocamos com o devido destaque. Acima de tudo, sempre soube aplicar um método, ou melhor, um princípio de trabalho que vem desses tempos e que garante que o documentário pode conter uma tocante dimensão pessoal e intimista. No caso de OLHARES, LUGARES, isso acontece através da colaboração de Varda com o fotógrafo e artista visual que assina com as iniciais JR: ele fotografa as pessoas de pequenas povoações mais ou menos esquecidas, ampliando as fotos e expondo-as nas fachadas das habitações; ela filma tudo isso como quem parte à descoberta de formas de viver que não tenham sido engolidas pela sociedade dos telemóveis e das chamadas ‘redes sociais’ — o resultado é um retrato da França profunda, em tom amargo e doce.
A longa-metragem de estreia do belga Lukas Dhont não se parece com nenhuma outra que tenhamos visto ao longo do ano. Podemos explicar a sua singularidade a partir do facto de se tratar da história de uma jovem que nasceu num corpo de rapaz — e que vive na ânsia de consumar a sua transformação física. Mas será preciso acrescentar que tal história é tratada com um misto de delicadeza e pudor que, afinal, nos remete para a questão fulcral da identidade — para o ser ou não ser da nossa verdade mais íntima. Distinguido com a Câmara de Ouro de Cannes (precisamente o prémio para a melhor primeira obra), GIRL é um exemplo admirável de um cinema que não tem medo de lidar com a complexidade do factor humano, recusando o esquematismo de muitos discursos panfletários — filme secreto, filme transparente, dos mais belos de 2018.