1 Jan 2020 19:35
Chegou-se a pensar que, 25 anos depois de "Pulp Fiction", Quentin Tarantino poderia voltar a ganhar a Palma de Ouro de Cannes. Assim não aconteceu, o que, em qualquer caso, não impediu que "ERA UMA VEZ EM… HOLLYWOOD" se impusesse como um dos títulos mais exemplares de uma certa vanguarda contemporânea. Porque é disso que se trata, realmente: a evocação de Hollywood em finais da década de 1960 está longe de ser um exercício banalmente nostágico; ao mesmo tempo que revisita um período crítico na história da produção cinematográfica e televisiva, Tarantino volta a celebrar o cinema como uma arte peculiar de contar histórias, de fazer história e discutir a percepção da própria história. Além do mais, já há algum tempo que não víamos uma dupla tão elegante, eficaz e bem disposta como Leonardo Di Caprio e Brad Pitt.
É bem verdade que, por vezes, a produção cinematográfica portuguesa tem dificuldade em abordar os nossos temas e as nossas personagens, confundindo realismo e artifício. "VARIAÇÕES", de João Maia, surgiu como um filme capaz de contrariar essa dificuldade e marcar uma diferença. O retrato da música de António Variações começa, como é óbvio, na invulgar composição de Sérgio Praia. Mas, para além do actor, ou melhor, através dele, deparamos com um equilíbrio instável — sedutor na sua instabilidade — entre a personagem e o seu mito ou, se preferirem, entre a história e a lenda. Por uma vez, o cinema português conseguiu, assim, tocar no âmago de um fenómeno genuinamente popular — e, mais do que isso, mostrar que é possível falar da nossa memória cultural sem ceder à vulgaridade das regras telenovelescas.
DOR E GLÓRIA, Pedro Almodóvar
Evocando várias décadas da história da vida portuguesa ao longo do século XX, antes e depois do 25 de Abril, "A HERDADE" distinguiu-se, antes do mais, como um projecto de risco. Tratava-se de fazer um grande fresco histórico sem pôr em causa, antes reforçando, uma dimensão primitiva de puro melodrama familiar. Se faz sentido, ou não, a produção portuguesa tentar gerar mais filmes deste tipo, eis uma dúvida a que não é fácil responder. O mais importante será reconhecer que o trabalho de realização de Tiago Guedes contraria o esquematismo com que, não poucas vezes, a nossa ficção cinematográfica lida com as histórias individuais e colectivas — além do mais, gerando personagens realmente complexas como aquelas que são interpretadas por Albano Jerónimo e Sandra Faleiro.
Quando se fizer a história económica do cinema das primeiras décadas do século XXI, será necessário sublinhar a importância decisiva dos asiáticos. E não apenas o Japão e a China, mas também a Coreia do Sul. Bong Joon-ho é um símbolo exemplar desse estado de coisas, muito para além do peso das estruturas industriais. O seu filme "PARASITAS" consegue mesmo a proeza de contar uma história de duas famílias que, sendo uma aguda crónica social do presente coreano, possui também a intensidade e a sedução de uma parábola universal. "PARASITAS" ganhou a Palma de Ouro de Cannes e não será arriscado prever que vai arrebatar o Oscar de melhor filme estrangeiro. Aliás, importa corrigir: a partir de 2020, certamente não por acaso, a categoria de melhor filme estrangeiro passa a designar-se melhor filme internacional.
Quando se fala dos filmes de maior impacto global, as manchetes mais preguiçosas insistem em citar apenas os filmes da Marvel. Pois bem, importa contrariar esses automatismos jornalísticos e celebrar um pequeno grande prodígio de cinema, de genuíno cinema, chamado "JOKER". O filme de Todd Phillips, protagonizado pelo genial Joaquin Phoenix, veio demonstrar, com serena contundência, que é possível tratar algumas componentes do universo dos super-heróis gerando um espectáculo realmente adulto, espelhando medos e fantasmas do nosso viver contemporâneo. Além do mais, "JOKER" é mesmo um fenómeno financeiro, conseguindo a proeza de, em termos relativos (isto é, considerando os custos de produção), entre os filmes enraizados no mundo da banda desenhada, ser o mais rentável de sempre. Mas mesmo que tivesse sido um desastre no box-office, seria sempre um dos símbolos marcantes de 2019, no cinema e, mais do que isso, na cultura popular.
Não é todos os dias, aliás, não é todos os anos que um filme português ganha o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, um dos mais importantes certames dedicados à produção independente de todo o mundo. Em boa verdade, não acontecia desde 1987, quando o prémio foi atribuído a O BOBO, de José Álvaro Morais. Voltou a acontecer em 2019, consagrando "VITALINA VARELA", de Pedro Costa, um belíssimo retrato de uma mulher de Cabo Verde que chega a Portugal pouco depois da morte do marido. É um prémio, afinal, que mostra como o mais específico — e também o mais inventivo e mais arriscado — cinema português possui um apelo genuinamente universal. E com uma componente estética que está longe de ser secundária: Pedro Costa é um dos autores contemporâneos empenhado em discutir as hipóteses de uma nova dramaturgia ou, se quiserem, um novo realismo, preciso e contundente, capaz de nos libertar das convenções quotidianas do audiovisual.
As regras do marketing conseguiram impor junto de muitos espectadores uma visão tecnicista do cinema cujo simplismo não tem memória, não tem, sobretudo, gosto pela pluralidade dos filmes — dir-se-ia que há os efeitos especiais dos super-heróis e… não há mais nada. Este ano, "LE MANS ‘66: O DUELO" foi um excelente e saudável desmentido desse marketing. Ao evocar a rivalidade das marcas Ford e Ferrari na edição de 1966 das 24 Horas de Le Mans, o realizador James Mangold não recusa, bem pelo contrário, a utilização da mais sofisticada tecnologia hoje disponível na grande indústria. E, no entanto, aquilo que distingue o seu filme é o gosto pela dimensão humana, quer dizer, a paixão pelas personagens, pelas suas diferenças e contradições. Por isso mesmo, "LE MANS ‘66: O DUELO" é também um filme em que, por uma vez, as regras do grande espectáculo não anulam os actores — com destaque para os impecáveis e exuberantes Christian Bale e Matt Damon.