4 Jan 2022 18:56
Como é habitual, fazemos o balanço do ano recordando os filmes mais marcantes do ponto de vista artístico e aqueles que obtiveram reconhecimento do publico.
Durante um terço do ano os cinemas estiveram encerrados. As restrições e o confinamento prejudicaram pelo segundo ano consecutivo a distribuição e a programação regular do circuito de exibição de cinema — no entanto, foi um ano de retoma, com crescimento global de espectadores em relação a 2020.
Licorice Pizza, Paul Thomas Anderson
Dizem as estatísticas que os adolescentes se tornaram uma força decisiva (em boa verdade, ‘a’ força decisiva) nas dinâmicas globais do mercado cinematográfico. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, há poucos filmes que retratem as atribulações da adolescência. Pois bem, é isso que acontece em "Licorice Pizza", com Paul Thomas Anderson a reinventar as suas próprias memórias, fazendo um filme quase musical, romântico ‘ma non troppo’, a fazer lembrar os grandes autores clássicos que filmaram os mais jovens, a começar por Elia Kazan. Tudo isso com uma paixão imensa pelos jovens actores: Cooper Hoffman, filho de Philip Seymour Hoffman, e Alana Haim, uma das irmãs da banda Haim — Cooper e Alana são as revelações do ano.
Colectiv – Um Caso de Corrupção, Alexander Nanau
É bom podermos voltar a sublinhar que o documentário continua a ser um género a viver tempos de grande vitalidade e, para mais, com uma presença regular no mercado português. Seja como for, "Colectiv" é um filme que supera os modelos correntes do documentarismo, já que a equipa dirigida por Alexander Nanau conseguiu seguir, a par e passo, uma investigação jornalística sobre um escândalo no sistema hospitalar que abalou a sociedade romena (o subtítulo português é mesmo "Um Caso de Corrupção") — o cinema existe, assim, como uma memória activa, social e política, em tudo e por tudo ligada às convulsões do presente.
The Card Counter – O Jogador, Paul Schrader
Talvez seja importante recordar que Paul Schrader, mesmo tendo encontrado, ao longo dos anos, muitos problemas para montar alguns dos seus projectos, continua a ser um dos autores mais brilhantes do cinema dos Estados Unidos — em boa verdade, desde meados da década de 70, quando escreveu o argumento de" axi Driver" para Martin Scorsese. Com "The Card Counter – O Jogador", Schrader consegue a proeza de fazer o retrato íntimo de um profissional de jogos de casinos, ao mesmo tempo que expõe alguns traumas ligados à história política e militar do seu país. Vai do realismo à parábola, sem esquecer que conta, para isso, com um actor realmente excepcional: é ele Oscar Isaac.
A Voz Humana, Pedro Almodóvar
Eis uma pergunta desconcertante: nos nosso dias, porquê e para quê adaptar ao cinema a peça "A Voz Humana", de Jean Cocteau, estreada em 1930? Pedro Almodóvar responde com uma encenação que preserva a teatralidade do texto, ao mesmo tempo que lhe injecta uma dimensão experimental que não é estranha ao trabalho de composição da sua actriz, a notável Tilda Swinton. Tendo em conta que dele vimos também "Mães Paralelas", podemos dizer que Almodóvar está a viver a sua maturidade artística através de um metódico reencontro com as regras clássicas do drama — neste caso, drama teatral, narrativa cinematográfica.
West Side Story, Steven Spielberg
Podia ser uma espécie de quadratura do círculo. Ou seja, tratava-se de reencontrar o fulgor clássico do espectáculo cinematográfico, não através de super-heróis ou ruidosos efeitos especiais, mas revisitando uma das referências lendárias da história do musical americano. "West Side Story"" de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, renasce, assim, como uma genuína celebração dos poderes do grande ecrã. A sua performance comercial não está a ser brilhante, mas não tenhamos dúvidas: daqui a várias décadas, quando se fizer a história do cinema no ano de 2021, "West Side Story" surgirá na linha da frente.
A Metamorfose dos Pássaros, Catarina Vasconcelos
Subitamente, um filme português destaca-se pela singularidade da sua proposta narrativa. Surpreendentemente (ou talvez não), terá sido também o filme português que, ao longo de 2021, encontrou mais significativo eco internacional. Dito de outro modo: o particularismo das memórias revisitadas por Catarina Vasconcelos possui um suave apelo universal. Em última instância, o que distingue "A Metamorfose dos Pássaros" é o seu carácter inclassificável: há nele o impulso quase documental de reorganizar os sinais do passado, mas o resultado tem tanto de retrato confessional como de fábula secreta sobre os sinais, os gestos e os afectos que definem a paisagem familiar.
Spencer, Pablo Larraín
O mundo mediático, algum jornalismo e também alguma televisão, continua marcado pelo imaginário das celebridades e, como alguns dizem, dos famosos. Daí que o retrato da Princesa Diana realizado pelo cineasta chileno Pablo Larraín envolvesse, à partida, um risco muito particular — importava não esquecer a dimensão mitológica da personagem, mas sem atraiçoar a sua verdade humana. "Spencer" acaba por conseguir recolocar Diana no interior de uma teia de factos e emoções alheia a qualquer cliché dramático — e escusado será dizer que isso fica a dever-se (e muito) à mais radical transfiguração de representação que 2021 nos ofereceu: ao interpretar Diana, Kristen Stewart renasceu como actriz.
Titane, Julia Ducournau
A questão da voz feminina marcou, de forma indelével, o ano de 2021. Aliás, será mais justo dizer: as vozes femininas, no plural, envolvendo muitas e fundamentais variantes e diferenças. A cineasta francesa Julia Ducournau afirmou-se como uma das protagonistas dessa conjuntura. O seu "Titane" é uma odisseia feminina, a meio caminho entre o cinema de terror e a parábola filosófica, desafiando ideias feitas sobre os corpos, a sexualidade, o amor e a morte. A Palma de Ouro no Festival de Cannes consagrou de forma exemplar a sua energia — para a história, importa também referir que esse foi um prémio atribuído por um júri presidido por Spike Lee.
Nomadland, Chloé Zhao
Para a história do cinema, eis um facto incontornável de 2021: em 93 edições dos Oscars, Chloé Zhao foi a segunda mulher a receber a estatueta dourada de melhor realização. Mais do que isso: o seu "Nomadland", que também arrebatou o Óscar de melhor filme do ano, ficou como título fulcral de um ano em que, no cinema e, obviamente, para lá dos filmes, as migrações, a procura de um lugar para viver, foram tema em destaque. O filme de Chloé Zhao deixa-nos uma fundamental mensagem temática e estética: é possível reflectir os grandes e dramáticos movimentos das sociedades sem menosprezar, antes pelo contrário, a singularidade dos destinos individuais.
Duna, Denis Villeneuve
No cinema global e, mais exactamente, no mercado global do cinema, a pandemia gerou um efeito tão bizarro quanto incontornável: assim, alguns filmes tendem a adquirir um valor simbólico de resistência. Entenda-se: de vontade de valorizar, continuar a valorizar, o cinema como fenómeno específico, antes do mais, das salas escuras. Aconteceu em 2020 com "Tenet", de Christopher Nolan; voltou a acontecer em 2021, com "Duna", de Denis Villeneuve. Até porque, convém não esquecer, a adaptação do romance épico de Frank Herbert não poderia deixar de evocar as memórias cinéfilas da versão que David Lynch dirigiu em 1984. Daí que o impacto de DUNA, sendo obviamente artístico e estético, não possa ser desligado das suas componentes industriais e comerciais. O seu ‘box office’ global (à beira dos 400 milhões de dólares) significou também que a indústria — a começar pela grande indústria de Hollywood — não pode, e não deve, deixar-se afogar nas rotinas dos super-heróis. De tal modo que Villeneuve recebeu luz verde para concretizar a segunda parte, prevista para 2023. É caso para dizer que, mesmo com pandemia, 2021 foi um ano de filmes capaz de abrir portas para o futuro do cinema.