10 Out 2024
Lisboa 2027 é o ano do terramoto no filme “O Melhor dos Mundos”, a segunda longa-metragem de Rita Nunes, uma ideia narrativa com base científica.
Não resisto a perguntar se aprecia filmes de catástrofe e se tem algum preferido.
Esse género foi muito explorado, sobretudo nos anos 90, que foi uma altura em que via muito cinema e, de certa forma, também estava nessa altura em formação, estava na escola de cinema.
Sempre me agradaram vários géneros, nunca posso dizer que o filme catástrofe seja uma coisa que me interessa especificamente, e tanto não me interessa como nunca me interessou fazer, e não considero que “O Melhor dos Mundos” seja sequer uma aproximação a isso, mas gosto do filme catástrofe como gosto de alguns géneros, não tanto terror.
Para alguém que vive em Lisboa e que desenvolve esta ficção em Lisboa, o terramoto é algo de muito preocupante?
Bem, não vivo atormentada por essa ideia, mas, como alfacinha, tendo nascido em Lisboa e vivido em Lisboa a vida toda, sim, é uma coisa que faz parte da minha vida, saber que vivemos numa cidade que foi devastada por um terramoto e também saber que há esse consenso de que vai acontecer novamente.
Sempre tive a preocupação em escolher algumas zonas da cidade para viver, e tentar perceber qual era a estrutura dos prédios. Ou seja, há pequenas coisas que sempre tive em atenção na minha vida em Lisboa. Claro que não vivo todos os dias preocupada se vai acontecer, ou não, mas sim, sempre foi algo que fez parte da minha vida.
Curiosamente, este ano, antes do filme estrear nos cinemas nacionais, viveu-se um momento preocupante. Aconteceu um tremor de terra que foi sentido, com algum impacto. De repente parece que a realidade antecipou o filme.
É estranho, por um lado ainda bem que foi só uma estranheza que não teve consequências maiores e ninguém se magoou, não houve grandes danos materiais, mas sim, de certa forma, foi uma coincidência que trouxe o tema um bocadinho mais para a ordem do dia, e houve muitas pessoas que começaram a discutir isso, e inclusive a equipa com que estou a trabalhar na promoção quiseram antecipar e começaram logo a falar do filme e foi um bom timing, sobretudo, porque não foi uma coisa grave.
Falando de oportunidade, há aqui outra data que vale a pena tornar mais presente. No próximo ano, decorrem 270 anos sobre a data do terramoto em 1755. Gostava de saber se essa data foi considerada.
Na verdade, o filme estreia em 2024 e passa-se em 2027. Passa-se nesse ano simplesmente porque eu precisava que, na ficção, pudéssemos reproduzir o mais fielmente possível este projeto que vai acontecer, estava previsto em 2024, 2025, agora está um pouco atrasado, pensa-se que será em 2026.
No filme era importante que fosse um futuro suficientemente próximo não se tornar uma coisa futurista, em termos de guarda-roupa, ou de tecnologia, os telemóveis, os carros, essas coisas todas. Queria só ter o tempo suficiente de distância em relação ao início do projeto, para que estes cabos novos já estivessem instalados, que já existisse a avaria de que se fala no início do filme. Por acaso não pensei nos 270 anos do terramoto, 2027 pareceu-me um ano que dava o tempo suficiente para o projeto já estar implementado e a funcionar.
É um projeto nacional de investigação científica, de instalação no Atlântico de cabos submarinos de telecomunicações para alerta precoce de sismos e também de tsunamis.
Esse é o elemento real, não sendo hoje ainda concreto, mas que permite imaginar em 2027 a possibilidade de um sismo que abale a costa portuguesa e a cidade de Lisboa, imaginando o que fazer com a informação transmitida através destes cabos.
Pode explicar melhor esse projeto que está prestes a entrar em funcionamento?
O projeto é um acordo entre o governo português, a ANACOM e um grupo de cientistas, para o desenvolvimento de um conjunto de sensores que vão ser instalados ao longo destes novos cabos de telecomunicação submarina que vão estar pousados no fundo do oceano.
Sensivelmente a que distância da costa?
Vão percorrer milhares de quilómetros. Ou seja, vai ser uma espécie de anel fixado em Portugal continental e que vai até aos Açores, dos Açores para a Madeira e da Madeira volta outra vez a ser amarrado em Portugal continental.
Cria-se um círculo imenso.
Exatamente. São milhares de quilómetros que vão ter um número de sensores ainda não fixado, mas que, além de permitirem o estudo da sismologia, vão permitir estudos com outros sensores, como a temperatura do mar, amostras biológicas, ou seja, uma série de coisas que vão poder ser estudadas em tempo real por estarem nos cabos de telecomunicações.
E que permitirá um sismo, com alguma antecedência…
Parece que não será com tanta antecedência como na ficção.
Porque no filme há um tempo em que o casal de cientistas, interpretado por Sara Barros Leitão e Miguel Nunes, consegue gerir essa informação. E isso gera uma discordância, e a narrativa é desenvolvida em torno dessa decisão, qual é o passo, a partir de um momento em que há um sinal de que pode acontecer um sismo, de que algo pode correr mal, não é?
Exato. Bom, nós seguimos o protocolo tal e qual como poderá acontecer no futuro, estes dados estão centralizados no IPMA, no Instituto Português de Mar e Atmosfera, e existe um centro operacional onde estes dados estão a ser monitorizados, mesmo hoje em dia, sem os sensores que estão no oceano, nos sismógrafos que estão em terra.
Este grupo reúne-se de urgência num centro operacional e começam rapidamente a analisar os dados e a tentar perceber se são fiáveis, se há alguma avaria num cabo para transmitir estes dados que apontam para a probabilidade de um grande terramoto.
A partir do momento em que se percebe que os dados estão corretos, que tudo aponta para essa probabilidade de haver um terramoto de grande magnitude, o grupo divide-se porque, como na vida, como continuamos a assistir cada vez mais perante factos científicos, como aconteceu, por exemplo, durante o COVID, as pessoas perante factos absolutos ainda assim também se dividem, os que acreditam, os que não acreditam, os que acreditam na vacina, os que não acreditam na vacina.
Como se gere a informação pública, sabendo que pode causar alarme?
Exato, ou seja, tudo isto acontece em várias áreas e já aconteceu. Aconteceu em Áquila, em Itália, aconteceu recentemente no Japão, em que foi dado um alerta também baseado numa série de dados.
Ou seja, não é inédito que possa acontecer exatamente como no filme. Aliás, tentámos da forma mais rigorosa possível falar quer com os cientistas, com a Proteção Civil, com o IPMA, para perceber o que aconteceria ou o que acontecerá no caso de uma situação semelhante poder acontecer. Por isso, de certa forma, é um simulacro.
O filme também fala um pouco do ambiente que vivemos nos dias que correm, deste ambiente pré-catástrofe. A ameaça das guerras nucleares, o terrorismo, as crises financeiras, as alterações climáticas, é muito pesado, tudo está muito pesado. E o filme retrata um pouco este ambiente e as divisões na sociedade perante estas catástrofes. Continua a haver pessoas a negar as alterações climáticas, que estão de um lado que dificultam que as coisas se resolvam.
Hoje é difícil desenvolver distopias, narrativas catastróficas porque, em boa verdade, o presente parece ser uma distopia. É algo que também sente enquanto realizadora e cinéfila?
Sim, neste caso interessou-me abordar o tema desta maneira e sim, é um espelho um pouco dos tempos que vivemos. No entanto, não me interessa ficar presa a um determinado tipo de tema, ou de género, e o próximo filme já terá um tema e um ambiente completamente diferente. Acho que cada projeto é um projeto e neste caso é isto.
O filme tem, obviamente, uma dimensão científica. Há consultoria do Instituto Dom Luís, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, apoio de entidades como o Instituto Português do Mar e da Atmosfera. O que aprendeu? Há algum segredo que não possa partilhar em público sobre esta realidade?
Não, está tudo no filme. Não há segredos, inclusive, há coisas que se passam no filme que vi acontecerem quando estava lá em fase ainda de preparação e pesquisa, à minha frente vi conversas entre várias pessoas com cargos altos. É parecido com algumas cenas do filme em que se discuta a questão da crise sísmica dos Açores, quando houve a questão da ilha de São Jorge ter que ser evacuada ou não.
Não há segredos. Isto é tal e qual assim que acontece. Se estivermos à beira de uma grande tragédia, as coisas vão ter que ser discutidas entre governo, proteção civil, estas entidades científicas que têm os dados nas mãos.