O “Adamant” é uma barcaça, uma estrutura em madeira ancorada num cais do rio Sena, em Paris, onde funciona um centro de dia para pessoas com perturbações mentais, explica o realizador Nicolas Philibert.
“É também o nome de um centro de dia psiquiátrico que funciona num edifício flutuante… mesmo no centro de Paris, rodeado por outras estruturas flutuantes tais como restaurantes, bares, coisas do género. É um lugar onde as pessoas com problemas de saúde mental podem vir durante o dia, onde não há camas, nem dormitórios, apenas ateliers e um bar. As pessoas, os passageiros, se assim posso dizer, podem vir durante o dia para participar em oficinas artísticas, tomar um café e desfrutar do ambiente, porque é aí que a vida acontece, é um ambiente acolhedor. É um lugar bonito que abriu em 2010, feito em madeira, é muito luminoso. É uma estrutura a flutuar, por isso há esta proximidade com a água. Estamos em Paris, mas quando estamos a bordo temos a impressão de que estamos completamente noutro lugar, longe da agitação de uma cidade”, acrescenta.
Nicolas Philibert é o grande nome do cinema de documentário que realizou “La Moindre des Choses”, sobre a saúde mental. Quase 30 anos depois regressa ao tema da psiquiatria.
Inaugurado em 2010, o “Adamant” faz parte da unidade psiquiátrica do Centro de Paris. Espaço inovador e único, despertou o interesse do cineasta francês que conhece o projeto desde o início:
“Ouvi falar deste local antes de ser construído. Quando ainda era um projeto. Anteriormente existia um outro centro de dia, numas instalações que não eram adequadas para o efeito. Um dia, o psiquiatra responsável disse: porque não fazer um lugar bonito para estes doentes? Os doentes psiquiátricos estão sempre afastados, em espaços onde não se vêm, um pouco escondidos… porque não construir um lugar bonito e visível no coração de Paris? Este local foi assim construído e faz parte da unidade de saúde do centro de Paris. Um dia, fui convidado para ir até lá como realizador para falar sobre o meu trabalho. Passei uma tarde com um grupo de doentes e cuidadores. Fizeram muitas perguntas sobre os meus trabalhos cinematográficos. Foi um encontro importante para mim. Saí de lá com a ideia de que talvez pudesse voltar, para fazer um filme”.
Estas pessoas não são perigosas, não são agressivas, não são violentas. São pessoas inteligentes, muitas vezes muito lúcidas, e hipersensíveis.
A presença de Nicolas Philibert enquanto convidado para falar no atelier de cinema no “Admant” foi determinante na decisão do cineasta francês realizar o filme. No centro de dia a abordagem baseia-se na dinâmica de grupo e na relação entre o prestador de cuidados de saúde e o doente:
“Existe toda uma equipa de cuidadores, enfermeiros, uma psiquiatra, terapeutas, psicólogos, uma secretária, é toda uma equipa de profissionais. É um lugar onde há vários ateliers, ou workshops. Há um workshop de cinema todas as quintas-feiras, um workshop de música, às sextas-feiras, há um workshop de costura, rádio, leitura, escrita e debate. E há um bar de convívio. Conheci pessoas lá que têm aspirações, que têm talentos, que têm pontos de interesse. São iguais a nós. É um lugar sempre em efervescência porque tem uma equipa muito empenhada, dinâmica e criativa. Eu diria que em psiquiatria é preciso inventar, é preciso inventar sempre”.
No filme “Sobre L’Adamant” assiste-se à forma como todas estas pessoas, doentes psiquiátricos, se relacionam com a música, a escrita, a pintura e com outras atividades:
“A rodagem decorreu no barco, ancorado no Cais de la Rapée, na margem direita do Sena, em Paris, perto da ponte Charles-de-Gaulle e da Gare de Lyon. O Adamant é um espaço de refúgio para os utentes, longe da agitação da cidade.”
Sem impor a presença da câmara, Nicolas Philibert filmou os doentes e os prestadores de cuidados de saúde durante sete meses:
“O filme foi rodado durante um longo período porque a Covid chegou a meio. Tive de interromper. Tive de filmar em várias vezes. As filmagens duraram sete meses. Houve muito improviso. O meu grande desejo foi dar voz aos doentes que lá estavam. Foi um filme muito improvisado. Ou seja, não cheguei como alguém que já sabia de antemão o que tinha de ser feito, o que tinha de ser dito. Não, cheguei lá como alguém que ia ouvir o que tinham para dizer. Para mim, era importante fazer um filme que fosse construído com base em encontros e em confiança. São premissas que não podem ser planeadas. Não se sabe o que vai acontecer e não faz mal, é isso que eu quero. O meu trabalho é tentar criar as condições para que as coisas aconteçam em frente à câmara. Aceito o que as pessoas me querem dar, é disso que tratam os meus filmes. Quando chego, explico que gostaria que me dessem algo e nos dissessem coisas, mas não estou lá para ditar o que tem de dizer, ou o que eu gostaria de ouvir”.
Com este filme, Nicolas Philibert quis quebrar a imagem negativa que se tem dos doentes psiquiátricos e ajudar a integrar estas pessoas que muitas vezes são postas de lado. É muito frágil a fronteira que os separa da dita normalidade:
“É muito importante dizer isto. Os doentes psiquiátricos são eternamente descritos como possivelmente violentos, potencialmente perigosos, agressivos e muitas vezes descritos como pouco inteligentes, quando, na realidade, a grande maioria deles, não são assim. Estas pessoas não são perigosas, não são agressivas, não são violentas. São pessoas inteligentes, muitas vezes muito lúcidas, e hipersensíveis. A sociedade é muito pouco sensata. Na realidade, a fronteira entre as pessoas ditas normais e as pessoas que não são normais, não existe ou é muito ténue”.
Fascínio pela rádio e por Portugal
O documentário “Sobre L’Adamant” ganhou o Urso de Ouro no festival de cinema de Berlim. Além da alegria por receber esta distinção, Nicolas Philibert vê no prémio um reconhecimento do cinema de documentário e da importância do tema das doenças psiquiátricas:
“Ganhar o Urso de Ouro foi, naturalmente, um grande prazer para mim e uma agradável surpresa. Não estava à espera. Disseram-me que tinha de ficar para a cerimónia de entrega dos prémios, por isso pensei que deveria ter ganho alguma coisa, mas nunca imaginei que fosse o maior de todos os prémios. Fiquei muito feliz por mim, por aqueles que, como eu, fazem filmes caseiros, por aqueles que fazem documentários e, também, pela psiquiatria, porque o Urso de Ouro deu maior visibilidade ao filme, o que é bom para se falar dos temas da psiquiatria, atrevo-me a dizer”.
Ouço muita rádio e acho que é um meio que alimenta a nossa imaginação.
O cineasta francês revela também o fascínio pela Rádio e considera Portugal um país “comovente” que gostaria de conhecer melhor:
“Conheço Lisboa. Já estive em Évora. Fui uma vez a uma conferência no sul do país, mas nunca viajei por Portugal. Gostaria de o fazer, mas com calma, durante mais de tempo. Há algo muito comovente neste país, é esta palavra Saudade. Estou a falar no CINEMAX da rádio Antena 1 e quero aproveitar para dizer que gosto muito da rádio. Ouço muita rádio e acho que é um meio que alimenta a nossa imaginação. Quando ouvimos rádio, criamos as nossas próprias imagens e inventamos a nossa própria vida – é isso que a Antena 1 faz”.
Filme fascinante e humanista. “Sobre L’Adamant” é um documentário sobre psiquiatria que convida a subir a bordo e conhecer os doentes e os profissionais de saúde no dia a dia.
Estreia a 9 de novembro nos cinemas portugueses.