10 Mai 2020 19:37
A ideia segundo a qual o erotismo é um trunfo comercial seguro peca, no mínimo, por simplismo descritivo — ou porque decorre de uma visão caricata do factor erótico, ou porque não está interessada em lidar com as convulsões dos mercados.
Exemplo sintomático poderá ser "Eros" (2004), filme de episódios cuja matéria está devidamente identificada no título, para mais com assinatura de três autores muito conhecidos, para não dizer populares: Michelangelo Antonioni, Wong Kar-wai e Steven Soderbergh. Pois bem, mesmo com lançamento de prestígio — extra-competição, no Festival de Veneza de 2004 — "Eros" foi um aparatoso desastre comercial.
Este é um daqueles objectos acessíveis na nossa bizarra actualidade cinematográfica, através de uma plataforma de streaming [Filmin]. Possui, além do mais, um importante valor simbólico, já que foi em grande parte produzido para permitir a Antonioni um derradeiro trabalho de realização — já na altura muito doente, o mestre italiano não voltaria a filmar, vindo a falecer em 2007 (contava 94 anos).
"The Dangerous Thread of Things", o episódio de Antonioni, possui mesmo qualquer coisa de balanço muito pessoal, já que o par central pode ser visto como uma revisitação, iconográfica e filosófica, romanesca e desencantada, dos pares que circulam pela sua obra — até por motivos visuais (em particular nos momentos de nudez), lembramo-nos sobretudo de "Identificação de uma Mulher" (1982). Isto sem esquecer que a sua obsessão pela vacilação das fronteiras de qualquer realidade — lembremos o caso modelar de "Blow-up" (1966) — perpassa por todas as cenas.
[NOTA: "Identificação de uma Mulher" está disponível na mesma plataforma de streaming; "Blow-up" existe no mercado do DVD].
Em "Equilibrium", num jogo calculado entre drama e ironia, Soderbergh aposta numa "confissão erótica" em ambiente psicanalítico (filmada num preto e branco nostálgico), enquanto Wong Kar-wai constrói uma narrativa de sedução e mistério, "The Hand", em que não podemos deixar de reconhecer as marcas do seu "In the Mood for Love/Disponível para Amar", rodado quatro anos antes.
Em resumo, um filme insólito e marginal (muito distante da moda dos "filmes-em-sketches") que merece ser descoberto — como se os seus autores tivessem encontrado aqui um espaço propício a uma viagem inesperada pelo seu próprio imaginário, numa espécie de jogo musical com tema e variações.