joao lopes
24 Ago 2017 23:40
Quando Sofia recebe como prenda uma nova boneca, o criado dirige-se aos espectadores para dizer, em tom inquieto, que o mais certo é que, até final do dia, a boneca ficará sem cabeça… Digamos que quase acerta… Em qualquer caso, a cena é esclarecedora do espírito com que Christopher Honoré dirigiu o seu novo filme — trata-se, afinal, de mobilizar o espectador para redescobrir as delícias perversas da fábula infantil.
Honoré inspirou-se, aliás, numa referência emblemática: "Os Desastres de Sofia" é, obviamente, a adaptação da obra clássica da Condessa de Ségur (publicada em 1858). Mais do que isso: para encenar as atribulações da pequena Sofia neste nosso século XXI, sempre em conflito com o mundo dos adultos, desesperando, em particular, a sua mãe, Honoré soube conservar o mínimo de referências sociais e culturais da época da acção, evitando transformar o seu trabalho numa derivação mais ou menos abstracta.
Para além da pequena e talentosa Caroline Grant, no papel de Sofia, Honoré soube também dirigir o seu elenco (incluindo, naturalmente, outras crianças) num registo de contagiante naturalidade — ou melhor, conservando os códigos de comportamento do século XIX, mas evitando o pitoresco e a caricatura paternalista.
Em boa verdade, "Os Desastres de Sofia" prolonga o gosto do realizador pela reinvenção dos clássicos — lembremos que o seu título anterior foi "Metamorfoses" (2014), segundo Ovídio — e também o apelo constante de uma certa musicalidade narrativa (ele é, afinal, o autor de filmes como "As Canções de Amor" ou "Os Bem Amados", respectivamente de 2007 e 2011). Face a tantos estereótipos com que o público infantil é regularmente bombardeado, eis um filme livre que quer partilhar a sua alegria com os espectadores (infantis ou não…).