A cumplicidade dos sonhos
"Corpo e Alma" é um dos mais recentes fenómenos do cinema húngaro: uma história de um homem e uma mulher que partilham os mesmos sonhos, desse modo acedendo às paisagens enigmáticas da pulsão amorosa.

No cinema contemporâneo, não há muitos autores que arrisquem trabalhar sobre as matrizes clássicas do melodrama integrando componentes de natureza mais ou menos fantástica. O menos que se pode dizer do filme "Corpo e Alma", da cineasta húngara Ildikó Enyedi (é o representante da Hungria na corrida às nomeações para o Oscar de melhor filme estrangeiro), é que nele encontramos esse risco, sempre fascinante, de sugerir uma dimensão transcendental do amor sem anular as componentes visceralmente realistas dos espaços em que a acção decorre.
Tudo se passa no cenário frio de um matadouro, entre o respectivo responsável financeiro (Géza Morcsányi) e uma inspectora que chega para uma tarefa de fiscalização (Alexandra Borbély): ele, solitário e relativamente distante dos colegas; ela, ainda mais solitária, fechada no seu casulo de rituais cumpridos de forma obsessiva. Por circunstâncias acidentais, vêm a descobrir que partilham os mesmos sonhos, literalmente, protagonizados por um casal de veados numa paisagem de frio e neve…
O mais surpreendente — e, por isso, mais envolvente — no labor de encenação de Ildikó Enyedi é a sua desarmante postura literal. Neste sentido: não se trata de desenvolver qualquer "tese" sobre a cumplicidade onírica das duas personagens centrais, mas sim de encarar a partilha dos sonhos como um fenómeno, por certo, excepcional, mas também de desarmante naturalidade.