joao lopes
13 Out 2018 3:17
Em que pensamos quando pensamos em Pier Paolo Pasolini (1922-1975)? Qual a herança de títulos tão singulares, e também tão fascinantes, como "Accattone" (1961), "Mamma Roma" (1962) ou "O Evangelho Segundo São Mateus" (1964)?
Podemos pensar em qualquer coisa de tão preciso como inomeável. A saber: um sentido da narrativa que evoluiu, em ziguezague, num misto de experimentalismo e ironia, entre um realismo muito cru e uma permanente disponibilidade para transfigurações mais ou menos fantasiosas ou fantásticas.
Simplificando, diremos que Alice Rohrwacher, italiana como Pasolini, é uma legítima herdeira do seu labor e, sobretudo, da sua dimensão poética. Vimos tal relação a funcionar num filme como "O País das Maravilhas" (2014); voltamos a reconhecê-la em "Feliz como Lázaro", vencedor do prémio de argumento no último Festival de Cannes.
Tudo acontece em torno (e, num certo sentido, por causa) de Lázaro (Adriano Tardiolo), jovem inocente e incauto que vive num mundo rural em que a realidade crua do dia a dia não exclui, antes parece atrair, um paciente desejo de utopia. Até que, por uma série de circunstâncias mais ou menos bizarras, Lázaro é impelido para a grande cidade…
Dir-se-ia que Rohrwacher trabalha a partir de uma delicada melancolia. Num duplo sentido: melancolia de um mundo primordial, separado das atribulações da vida urbana (mesmo quando nele predominam ancestrais formas de exploração); e de um cinema capaz de celebrar esse mundo para além de qualquer naturalismo simplista.
Infelizmente, "Feliz como Lázaro" não consegue a consistência de "O País das Maravilhas", sobretudo na sua segunda parte (citadina) em que a liberdade de associação da primeira parte dá lugar a um tom demonstrativo algo simplista. Fica, em qualquer caso, a marca de um cinema italiano que sabe preservar as suas memórias mais íntimas.