joao lopes
10 Jan 2020 22:52
A noção segundo a qual um autor se define pela constância de "temas" ou de um "estilo" não passa de uma pequena ideia — aliás, uma ideia de pequenez. Seja como for, continua a haver cineastas capazes de nos surpreender, na exacta medida em que sabem alargar as fronteiras do seu próprio universo. Assim acontece agora com Todd Haynes, através do seu magnífico "Dark Waters" (entre nós completado com o subtítulo, algo rebarbativo, "Verdade Envenenada").
Admiramos Haynes através das suas "biografias" musicais, nomeadamente essa visão multifacetada de Bob Dylan concretizada em "I’m Not There" (2007). E admiramo-lo também pelas suas várias, e muito inventivas, incursões nas paisagens clássicas do melodrama: "Carol" (2015), inspirado em Patricia Highsmith, bastará como exemplo modelar. Faltava-nos descobriur Haynes como brilhante herdeiro da mais sofisticada tradição liberal de Hollywood.
Baseado em factos verídicos, este é, realmente, um filme alicerçado na principal linha dramática dessa tradição: um indivíduo, neste caso o advogado subtilmente interpretado por Mark Ruffalo (também produtor do filme), desenvolve um metódico inquérito, a meio caminho entre o labor jornalístico e a investigação policial. Objectivo: devolver ao seu cliente — e à comunidade — a verdade sobre um gravíssimo caso de poluição gerado pelos produtos químicos da empresa DuPont.
O nosso olhar é conduzido pelo olhar da personagem central, num processo que, implicando uma revelação factual, envolve, sobretudo, a ideia liberal que preside a tal lógica narrativa. Liberal, entenda-se, não partidária, muito menos panfletária: o que está em jogo é a procura das formas de equilíbrio entre a consistência do colectivo e a legitimidade dos direitos individuais.
Lembramo-nos de autores exemplares dessa tradição, de Richard Brooks a Sydney Pollack — de "O Falso Profeta" (1960), do primeiro, a "A Calúnia" (1981), do segundo. E compreendemos que, para Haynes, "Dark Water" não é apenas uma diversificação de tarefas; é também, é mesmo sobretudo, o reencontro com uma árvore genealógica a que, em boa verdade, nunca deixou de pertencer.