joao lopes
11 Set 2020 23:35
Sobre a mais recente longa-metragem de Arnaud Desplechin, "Roubaix, Misericórdia" (revelada em Cannes/2019), talvez seja útil dizer que não podemos deixar de a receber com alguma desconcertada surpresa. Que é como quem diz: o cineasta ligado à grande tradição melodramática — lembremos os épicos "Reis e Rainha" (2004) e "Um Conto de Natal" (2008) —, surge a assinar um policial puro e duro, centrado numa investigação em torno do assassinato de uma mulher de idade avançada.
Nada contra, como é óbvio. Mas talvez valha a pena referir que este interessante "desvio" de Desplechin passa pelo gosto muito pessoal de filmar a sua cidade natal, Roubaix. Nesta perspectiva, talvez se possa dizer que há em "Roubaix, Misericórdia" uma ambiência ambiguamente documental que nos leva a descobrir as convulsões da acção contaminadas pela energia própria de uma reportagem.
Há toda uma dimensão social que persiste no trabalho de Desplechin, uma vez mais sem nada de simbolismo "sociológico". Por um lado, deparamos com situações reveladoras dos mais dramáticos desequilíbrios, desde a pobreza até à manipulação mais ou menos agressiva das mulheres; por outro lado, cada personagem distingue-se pelo seu carácter irredutível, nunca encerrado num cliché, seja ele psicológico ou moral.
Daí o reencontro com aquilo que é, afinal, uma marca vital do universo do cineasta. A saber: a cuidada direcção de actores, por certo essencial para contrabalaçar os momentos em que o filme parece abandonar as necessidades da intriga para valorizar de modo algo mecânico o "espectáculo". Destaque para as duas actrizes, Léa Seydoux e Sara Forestier (lembremo-la em começo de carreira, em 2003, em "A Esquiva", de Abdellatif Kechiche); e também, claro, para o impecável Roschdy Zem — a sua composição do comissário de polícia valeu-lhe o César de melhor actor referente a 2019.