crítica
As marionetas do poder
Com contenção e rigor, "A Troca das Princesas" revisita o século XVIII para expor todo um jogo político entre França e Espanha em que as crianças são compelidas a desempenhar uma função central.

joao lopes
22 Ago 2020 0:40
Ao longo dos anos, uma certa formatação do chamado "filme histórico" (em grande parte induzida por rotinas televisivas de produção) foi gerando uma pesada retórica visual, quase sempre de escasso valor dramático. Dito de outro modo: o investimento "vistoso" em cenários e guarda-roupa seria, por si só, uma exemplar "reconstituição" da história…
Elogiemos, por isso, a contenção e o rigor de um filme como "A Troca das Princesas" (2017), agora lançado no mercado português. Assim, se é verdade que a realização de Marc Dugain não descura todo um visual capaz de revisitar o fausto das cortes francesa e espanhola na primeira metade do século XVIII, não é menos verdade que estamos perante uma narrativa que privilegia a complexidade das personagens contra qualquer possível ostentação formalista.
O fundamental acontece, assim, a partir de um inusitado cenário político. A saber: a oferta, por parte do Regente de França, de um casamento entre Luís XV e a infanta espanhola Mariana Victoria — ele com 11 anos, ela com 4. Mais ainda: a filha do Regente, de 12 anos, casar-se-á com o Príncipe das Astúrias, de 14 anos, herdeiro do trono espanhol.
Sem forçar situações de clímax, evitando reduzir as personagens a marionetas da própria cenografia em que vivem (ou são obrigadas a viver), o filme consegue a proeza simples, mas essencial, de expor o drama daqueles quatro seres incautos a partir de questões muito concretas: primeiro, os enigmas de uma sexualidade que, mais tarde ou mais cedo, serão compelidos a protagonizar; depois, o desencanto com que vão pressentindo a dimensão política do enredo em que foram inseridos.
Baseado no romance homónimo de Chantal Thomas — adaptado pela própria escritora, em colaboração com o realizador —, "A Troca das Princesas" é um objecto de cinema tanto mais envolvente quanto há nele um evidente cuidado no trabalho dos actores. Assim, encontramos no elenco veteranos como Lambert Wilson (Filipe V de Espanha), Olivier Gourmet (o Regente francês) e Andréa Férreol (Princesa Palatine), mas o destaque vai para os mais jovens. São eles:
— Kacey Mottet Klein, no papel de Luís, Príncipe das Astúrias (vimo-lo recentemente em "O Adeus à Noite", contracenando com Catherine Deneuve, sob a direcção de André Téchiné);
— Ana Maria Vartolomei, interpretando Louise, a filha do Regente;
— Igor van Dessel, compondo um Luís XV de paradoxal atitude adulta;
— Juliane Lepoureau, precoce talento a emprestar uma misteriosa intensidade à figura da infanta espanhola.
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