joao lopes
2 Mai 2014 0:51
Em 2004, quando "Fahrenheit 9/11", de Michael Moore, arrebatou a Palma de Ouro do Festival de Cannes, pode dizer-se que algo mudou no paradigma corrente das obras "premiáveis" nos grandes certames do cinema — era, afinal, a consagração de um… documentário.
Não que não houvesse exemplos anteriores. O certo é que, desse modo, se viu superada a noção corrente segundo a qual a visão documental deveria ser tratada como expressão de um nicho mais ou menos "especializado". Num certo sentido, "Sacro GRA", de Gianfranco Rosi, é um herdeiro directo de tal conjuntura: um singularíssimo documentário que, em 2013, venceu o Festival de Veneza.
De onde vem a sua singularidade? Pois bem, do próprio objecto que elege como tema. A saber: o GRA (Grande Raccordo Anulare), quer dizer, a longa (perto de 70 km) auto-estrada que contorna a cidade de Roma, assegurando as suas principais entradas e saídas.
Como se filma uma auto-estrada? A resposta de Rosi é simples e convincente: tendo em conta a pluralidade de comportamentos humanos que nela podemos encontrar. Daí o misto de proximidade e estranheza das personalidades escolhidas, desde um investigador da degradação das palmeiras nas imediações do alcatrão, até um proprietário de um palacete muito "kitsch" que aluga os seus salões para coisas tão diversas como rodagens de filmes e cerimónias de casamentos, passando por um pescador de enguias…
Cada cena de "Sacro GRA" funciona, assim, como quadro vivo de uma existência que pressentimos plena de ironias e contradições. E se é verdade que o realizador evita carregar as personagens de qualquer simbolismo fácil, não é menos verdade que o filme deixa uma amarga sensação histórica — a de uma sociedade feita de muitas ligações entre os seus elementos, mas também de outras tantas formas de solidão.