joao lopes
15 Set 2017 19:18
Será que o cinema político ainda existe?… É uma pergunta de algibeira, quanto mais não seja porque surge, muitas vezes, parasitada por convenções mais ou menos "militantes" e "panfletárias" que, em última instância, ocultam um facto tão simples quanto essencial: um filme não é um comício, mas sim uma narrativa. Poderemos, por isso, perguntar: quem é que ainda filma politicamente?
Entre as possibilidades de resposta, vale a pena avançar com um nome: Kathryn Bigelow. Dois títulos bastariam para ilustrar a riqueza da sua visão: "Estado de Guerra" (2008), sobre os soldados americanos no Iraque (valeu-lhe o Oscar de realização, o único até agora atribuído a uma mulher), e "00:30 – A Hora Negra" (2012), sobre a missão para localizar e abater Osama bin Laden. Agora, com "Detroit", Bigelow arrisca encenar os motins que abalaram aquela cidade, em 1967.
O resultado corresponde, justamente, a um notável trabalho político. Desde logo, porque se trata de evocar um tempo de muitas convulsões em que a luta pelos direitos civis emergia como um tema fulcral da dinâmica da sociedade americana; depois, porque os negros americanos, em particular, lutavam pela plena igualdade, sendo por vezes alvo de um racismo brutal (como aconteceu em Detroit) — aliás, para compreender um pouco melhor a conjuntura nacional em que tudo ocorreu, um outro filme recente, "Eu Não Sou o Teu Negro", de Raoul Peck, poderá ser também um objecto muito útil.
Os motins de Detroit tiveram o seu mais violento ponto crítico no incidente do Motel Algiers, em que a acção da polícia conduziu à morte de três jovens afro-americanos, na sequência de uma detenção brutal e humilhante. É verdade que esse incidente ocupa a zona central do filme (cuja duração global se aproxima das duas horas e meia), mas Bigelow tem o cuidado de nunca o reduzir a "símbolo" unívoco dos dramas sociais daquele momento.
Acima de tudo, "Detroit" é um filme sobre uma cidade em estado de guerra, através da metódica acumulação de elementos capazes de nos fazer compreender como as questões da desigualdade e as manifestações de racismo surgem, afinal, enraizadas no tecido social. O trabalho dos actores é, nessa perspectiva, fundamental: John Boyega (que conhecemos através de "Star Wars"), Will Poulter, Anthony Mackie, etc. Sem esquecer que Bigelow é uma cineasta que sabe organizar uma complexa estrutura narrativa, preservando um envolvente "espírito" documental — grande filme, grande cinema, bem distante dos lugares-comuns do Verão cinematográfico.