joao lopes
11 Fev 2021 23:32
Vários analistas da imprensa dos EUA têm reconhecido no novo filme de Sam Levinson, "Malcolm & Marie" (Netflix), a influência de John Cassavetes (1929-1989). E não há dúvida que, mesmo não esquecendo a dimensão tutelar da figura de Cassavetes na história do moderno cinema americano, há boas razões para isso: Levinson mostra-se também aqui como um metódico e obsessivo observador das verdades e mentiras, ilusões e desilusões de uma relação homem/mulher — um pas de deux que é um verdadeiro jogo de espelhos.
Com uma diferença que, creio, importa sublinhar. Levinson tem uma concepção dramática do espaço/tempo — para mais, neste caso, acontecendo tudo numa noite, no cenário único da casa habitada pelo par — que pressupõe uma geometria de construção com o seu quê de austero e controlado. Cassavetes, por sua vez, é o cineasta da contaminação da mise en scène pela própria vida das personagens: o equilíbrio narrativo do filme vive, desmancha-se e recompõe-se através dos sobressaltos vividos por essas personagens — no limite, o mundo de Cassavetes quase parece nascer de uma reportagem.
Daí que me pareça valer a pena evocar outra referência para o exercício de estilo a que Levinson se entrega. A saber: David Mamet (n. 1947). Na procura de algo semelhante ao que acontece na obra do autor de "American Buffalo", "Glengarry Glen Ross" e "Oleanna", Levinson labora incessantemente sobre as nuances dos diálogos — o que é tanto mais importante quanto ele tem à sua disposição dois intérpretes magníficos, Zendaya e John David Washington, em entrega total às suas personagens.
A desmontagem clínica da relação entre Malcolm e Marie é tanto mais sugestiva quanto não é alheia a uma percepção interior do universo do próprio cinema made in USA. De facto, ele é um realizador de cinema e ambos regressam a casa depois da estreia (bem sucedida) do seu novo filme… De tal modo que as relações da ficção do filme com a vida particular do casal adquirem um papel determinante no desenvolvimento da noite. Sem que haja fronteira estável entre a vida e a sua representação fílmica — eis a moral da história.