joao lopes
8 Fev 2017 23:02
De que falamos quando falamos de Jacqueline Kennedy? A pergunta justifica-se, entre outras razões, porque pressentimos que, de uma maneira ou de outra, a sua representação (nomeadamente em ficções televisivas) tem surgido quase sempre, não como uma personagem autónoma, mas "a reboque" da do Presidente John F. Kennedy. Compreendemos que assim seja, já que JFK é uma referência central no imaginário político americano — mas era tempo de dar, aliás, devolver uma vida própria à personagem.
Assim faz Pablo Larraín neste filme prodigioso que é "Jackie". E não deixa de envolver alguma amarga ironia que tal aconteça, inevitavelmente, a partir de JFK — e, mais concretamente, do seu assassinato, em Dallas, no dia 22 de Novembro de 1963. De que se trata? Uma evocação/reconstituição à maneira dos convencionais telefilmes "históricos"? Nada disso: antes um vibrante e comovente reencontro com Jacqueline Kennedy, quer dizer, com um ser humano finalmente encenado a partir das convulsões da sua identidade.
O que Larraín propõe não é, por isso, uma narrativa linear, antes uma colagem (admiravelmente elaborada) em que uma entrevista dada poucos dias depois da morte de JFK nos conduz ao cerne de uma personalidade fragmentada. Jackie foi, afinal, o símbolo de um ideal conjugal, familiar e político, consagrado nas lendárias referências à mitologia do Rei Artur e de Camelot (e também ao musical homónimo da Broadway). Através da entrevista, ela aponta o cerne da questão. A saber: os contrastes vividos entre a celebração de uma miragem utópica e as verdades mais básicas da existência na Casa Branca.
Num certo sentido, Pablo Larraín, cineasta chileno, retoma aqui algumas das obsessões que já marcavam os seus filmes sobre a ditadura de Augusto Pinochet, em especial "Post Mortem" (2010), no qual se evoca o golpe que pôs fim ao governo de Salvador Allende. O confronto com a evidência indizível da morte acaba por funcionar como um radical desafio para Jackie — como lidar com o absurdo de uma existência subitamente despojada de todas as suas projecções imaginárias?
Através de um espantoso ziguezague de lugares e situações, integrando de forma admirável alguns documentos audiovisuais da época, Larraín faz um verdadeiro filme-de-luto em que a definição da personagem de Jackie é, necessariamente, central. Por isso mesmo, dizer que Natalie Portman (nomeada para o Oscar) começa por conseguir uma impressionante "duplicação" de Jacqueline Kennedy é francamente insuficiente: acima de tudo, ela sabe expor a ambivalência de uma mulher invulgar, oscilando sempre entre a figura idealizada e as componentes muito reais da sua condição de mãe e símbolo cultural — este é, em última instância, um filme que nos volta a ensinar a difícil arte de lidar com a complexidade dos seres humanos e das suas tragédias mais íntimas.