joao lopes
31 Jan 2020 23:40
Como sabem todos os espectadores interessados, "J’Accuse – O Oficial e o Espião" evoca o processo de acusação, julgamento e prisão a que foi sujeito Alfred Dreyfus, oficial de artilharia do exército francês, injustamente acusado de traição à Pátria, ao serviço da Alemanha, em 1894. A sua memória como alvo de difamação e preconceito fez com que se inscrevesse na história com a designação de "Caso Dreyfus".
Por certo um dos exemplos mais admiráveis da ficção histórica segundo Roman Polanski (a par de "O Pianista", que lhe valeu o Oscar de realização em 2003), "J’Accuse – O Oficial e o Espião" expõe, com metódica frieza, o efeito perverso de um gigantesco aparato de falsidades. Além do mais, a condição judaica de Dreyfus confere à sua saga de réu e prisioneiro na Ilha do Diabo (apenas seria ilibado em 1906) a dimensão de símbolo trágico do anti-semitismo.
Ainda assim, importa sublinhar a dimensão específica da narrativa de Polanski, construída a partir de um argumento que ele próprio escreveu em colaboração com Robert Harris, autor do livro em que o filme se baseia, disponível em tradução portuguesa. Não se trata, de facto, de elaborar uma mera antologia de peripécias, antes de mostrar o processo que conduziu da mentira à verdade.
Dreyfus surge interpretado, num misto de frieza e desamparo, por Louis Garrel, mas a personagem central é Georges Picquart, composta pelo magnífico Jean Dujardin. Picquart é, afinal, aquele que enuncia a questão base: a paixão da verdade deve ser assumida até às derradeiras consequências, mesmo quando os seus efeitos podem manchar a instituição (militar) que os protagonistas integram.
Nesta perspectiva, "J’Accuse – O Oficial e o Espião" possui qualquer coisa de raro didactismo político. Através de um intransigente realismo, a mise en scène de Polanski mostra como a evocação da verdade dos factos nunca é simples, já que depende do contexto marcado pelas formas mais diversas, por vezes muito perversas, de poder. Estamos perante um grande filme, esplendorosamente fora de moda, sobre o desejo de conhecer todos os mecanismos das relações humanas.