joao lopes
8 Mar 2020 0:08
O menos que se pode dizer de um filme como "Para Sama" é que com ele, e através dele, somos levados a olhar o mundo para além da agitação mediática em que vivemos — ou somos compelidos a viver. Por uma vez, temos a percepção da guerra na Síria, não como um clip de 50 segundos sustentado por uma voz off, antes como uma vivência tragicamente peculiar.
Waad Al-Kateab e o seu marido, um médico da cidade de Alepo, decidiram permanecer na sua residência até ao limite do (im)possível, mesmo depois do nascimento da sua filha Sama. Daí o primeiro e fundamental valor de testemunho — trata-se de escrever/filmar uma carta dirigida à própria filha, doando-lhe o capítulo fundador da sua história pessoal.
Daí também a singularidade narrativa e simbólica de "Para Sama". Em vez da aceleração demonstrativa de uma notícia televisiva, descobrimos aquilo que, por desencantada ironia, não deixa de ser um "home movie": Waad Al-Kateab, com a colaboração de Edward Watts (que com ela partilha a assinatura da realização), filma os habitantes de uma casa ameaçada, mas tocada por uma contagiante energia vital.
A intensidade de "Para Sama" é tanto maior quanto todas as situações — desde os corpos que deixam rastos de sangue no chão do hospital, até aos momentos de paradoxal humor partilhados pelos sobreviventes — emergem de uma experiência exposta na sua singularidade humana. Grande documentário? Sim, sem dúvida, mas não encerremos a nossa visão num espartilho de "género" — grande cinema.