27 Out 2019 22:14
Perante a estreia de "O Traidor", um dos grandes filmes da última edição do Festival de Cannes (mesmo se ficou fora do palmarés…), talvez seja útil recordar que não estamos, de modo algum, perante uma surpresa. Na verdade, o seu realizador, o italiano Marco Bellocchio (a completar 80 anos no dia 9 de Novembro) é um artista de elaboradas narrativas, com títulos marcantes ao longo de mais de meio século, desde a crónica juvenil e política de "I Pugni in Tasca" (1965) até subtis derivações melodramáticas como no recente "Sonhos Cor-de-Rosa" (2016).
No centro de "O Traidor" encontramos a personagem verídica de Tommaso Buscetta (1928-2000), membro da Cosa Nostra que, em meados dos anos 80, se afastou daquela organização criminosa, denunciando às autoridades os responsáveis por muitos assassinatos cometidos pelos seus membros. A sua toma de posição transformou-o num alvo a abater, acabando por protagonizar um ziguezague geográfico que, da Sicília, o levou a lugares do Brasil e EUA.
Bellocchio não faz, de modo algum, um documentário, o que não impede que "O Traidor" seja um objecto em que a contundência dos factos surge através de um rigor a que apetece chamar didáctico, já que tudo surge filtrado através de uma calculada distanciação. De tal modo que, à semelhança de outros grandes filmes de Bellocchio, a evocação histórica é inseparável de uma fulgurante dimensão trágica. Para nos ficarmos por um contraponto esclarecedor, lembremos o seu admirável "Bom Dia, Noite" (2003), sobre o rapto de Aldo Moro, em 1978.
Elemento fundamental na mise en scène de Bellocchio é, como sempre, a sua cuidada direcção de actores, nunca menosprezando o valor dramático de cada um deles, mesmo aquele que possa ter a seu cargo a mais secundária das personagens. Seja como for, o destaque vai para Pierfrancesco Favino, compondo um Buscetta que se revela através da tensão brutal entre a prática do crime e as convulsões morais de uma crescente solidão.