joao lopes
10 Jul 2015 3:23
É bem verdade que algum do cinema mais interessante que se faz hoje em dia passa por uma consciência aguda, ao mesmo tempo artística e conceptual, da memória. Nos mais variados sentidos — desde a pura memória histórica até ao património narrativo.
Produzido por Paulo Branco, o filme francês "O Astrágalo" é mais um notável exemplo dessa dinâmica, adaptando um objecto lendário da literatura francesa: o romance "L’Astragale", de Albertine Sarrazin, publicado em 1965.
Recheada de componentes auto-biográficas, esta é a história de uma mulher — também chamada Albertine — que, ao fugir da prisão, se lesiona num osso do pé (o astrágalo, precisamente). Através de uma odisseia que a vai fazer viver numa teia de marginalidade e prostituição, Albertine experimenta as convulsões de um amor louco que, inevitavelmente, a conduzirá a questionar todas as componentes da sua identidade.
Provavelmente, o impacto do filme sobriamente realizado por Brigitte Sy depende da sua resistência a qualquer efeito banal de "reconstituição". Assim, é verdade que, desde os automóveis ao guarda-roupa, "O Astrágalo" evoca um tempo e ambientes que remetemos para as décadas de 50/60; ao mesmo tempo, não é menos verdade que tudo acontece num clima ambivalente em que a crueza dos sinais realistas não exclui, antes parece potenciar, as marcas da loucura passional.
Com a notável Leïla Bekhti no papel de Albertine, bem secundada por Reda Kateb (Julien), este é também um filme que escolhe uma marca visual hoje em dia, no mínimo, pouco comum. De facto, a opção pelo preto e branco, para mais em formato scope, não pode deixar de nos fazer evocar certos momentos emblemáticos da Nova Vaga francesa — a começar por "Jules e Jim" (1962), de François Truffaut. É, enfim, uma memória activa e inventiva, empenhada numa recriação de delicado rigor.