joao lopes
26 Ago 2015 20:09
Que significa filmar o presente de um país?
Como filmar o presente de Portugal?
Quais as imagens dominantes do nosso presente e como escapar aos seus efeitos de normalização de olhares e pensamentos?
Provavelmente, estas são interrogações que gostaríamos de encontrar formuladas em muitos filmes portugueses… Em qualquer caso, "As Mil e uma Noites", de Miguel Gomes, é um projecto que as integra, discute e reformula, num desafio ao mesmo tempo temático e narrativo que, finalmente, chega às salas.
É, desde logo, um desafio aos hábitos de consumo. Estamos, de facto, perante um filme em três partes que se propõe funcionar num tempo mais ou menos dilatado (a segunda parte chegará a 24 de Setembro; a terceira a 1 de Outubro). O primeiro volume agora estreado — com o subtítulo "O Inquieto" — funciona como um leque de experiências apostado em sublinhar as tensões inerentes à ideia central do projecto: procurar o realismo das crises sociais através de uma deambulação pelos labirintos das Mil e uma Noites e das histórias de Xerazade (interpretada por Crista Alfaiate).
Que país é este, então? Digamos que se trata de um território, entre o vivido e o imaginado, no qual descobrimos os dramas do desemprego, mas também as atribulações de um exterimador de vespas… o ritual do primeiro banho do ano, mas também o poder encantatório das histórias de Xerazade…
É sintomático que, a certa altura, logo na abertura deste vol. 1, Miguel Gomes se encene, ele próprio, como um cineasta-em-fuga… Não quer, não pode ou não sabe fazer o seu filme e, por isso, tenta escapar à sua própria equipa — são momentos saborosamente burlescos que, em última instância, nos dizem que não há nada de automático na decisão de filmar/tocar as feridas mais fundas da nossa tão propalada "crise".
Daí a singular experiência que "As Mil e uma Noites" envolve, desenvolve e partilha. Não estamos, assim, nem no território audiovisual das notícias, nem no país formatado das telenovelas. Nada disso: esta é uma viagem cinematográfica capaz de questionar, de uma só vez, as fronteiras do nosso real e o labor cinematográfico para as desenhar, redesenhar e habitar. Cinema nosso, visceral.