Don Cheadle, actor e realizador de


joao lopes
14 Jul 2016 3:15

Digamos que, fosse qual fosse a opção, nunca seria fácil: ao lançar-se na aventura de retratar Miles Davis (1926-1991), Don Cheadle enfrentava a riqueza imensa da música de uma das figuras tutelares da história do jazz e também a complexidade dramática e dramatúrgica de qualquer aproximação da "vida & obra". E tudo isso está no filme "Miles Ahead", com Cheadle a assumir a dupla condição de actor principal e realizador.

Cheadle arriscou, assim, enfrentar o enigma de Miles num momento particularmente cruel da sua existência: tudo começa em meados da década de 70, quando a sua evolução artística, nomeadamente por causa da integração das electrónicas, é contestada por muitos [escute-se, aqui em baixo, um registo de 1975, no Festival de Newport], ao mesmo tempo que a sua dependência de algumas drogas atingiu um ponto crítico.

Deparamos, assim, com um homem dilacerado e ameaçado por forças reais ou imaginárias (veja-se todo o episódio em torno das gravações que ele guarda, justificadamente, como uma preciosidade absoluta). Sem ceder a qualquer estereótipo do "artista-como-mártir", Cheadle convoca-nos para a intimidade de Miles, evitando também qualquer comportamento de voyeur — trata-se, afinal, de observar uma personagem ameaçada pelos seus próprios fantasmas, e tanto mais quanto a acção recua, regularmente, aos anos 60 e ao atribulado casamento com Frances Taylor (que está na capa do álbum "Someday My Prince Will Come", 1961).

Como se prova, é possível regressar ao registo biográfico sem tentar esgotar a "totalidade" de uma vida e, sobretudo, sem ceder a qualquer tipo de consagração banalmente mitológica. Dir-se-ia, até, que "Miles Ahead" escolhe como prioridade, não a música, mas o homem — paradoxalmente, isso leva-nos a voltar a ouvir Miles de forma ainda mais intensa e fascinada.

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