joao lopes
9 Mar 2017 16:55
Depois da estreia em época de Oscars do filme de Pablo Larraín, "Jackie" (que deu a Natalie Portman uma nomeação na categoria de melhor actriz), é natural que muitos espectadores vejam na biografia assinada pelo cineasta chileno que agora chega às salas portuguesas — "Neruda", sobre o poeta Pablo Neruda (1904-1973) — uma espécie de consequência natural. De facto, "Neruda" é anterior a "Jackie", tendo sido revelado em Maio de 2016, na Quinzena dos Realizadores, em Cannes.
Não é uma mera questão cronológica que importa. É, isso sim, o facto de Larraín recorrer ao modelo tradicional do "filme-biográfico" para o discutir e, por assim dizer, virar do avesso. Desde logo, porque ele escolhe um arco temporal claramente delimitado: em "Jackie", tratava-se de rever Jacqueline Kennedy nos dias que se seguiram ao assassinato do marido; em "Neruda", acompanhamos de forma metódica as convulsões decorrentes do facto de o poeta ter criticado, em 1948, a repressão anti-comunista do Presidente Gabriel González Videla.
Nesta perspectiva, aquilo a que assistimos é menos a caracterização "psicológica" de uma personagem e mais o labirinto de tensões que aproxima e afasta duas figuras emblemáticas: Neruda, claro, interpretado com admirável secura realista por Luis Gnecco, e Oscar Peluchonneau, o chefe da Polícia de Investigação que Gael García Bernal compõe num jogo de desconcertante (e fascinante) ambivalência moral.
Sendo um notável fresco histórico, em que cada detalhe conta, "Neruda" acaba por ser também um drama de inusitada intimidade. Assistimos, em última instância, não a uma abordagem panfletária ou maniqueísta do espaço político, antes a uma viagem pelas diferenças entre dois homens separados pelos valores históricos, mas "unidos" pela miragem de um Chile mítico e redentor. Larraín é, enfim, um cineasta capaz de nos dar a ver a história — individual e colectiva — como uma saga visceralmente humana, impossível de reduzir a conceitos meramente ideológicos.