crítica
Novas aventuras do Bem e do Mal
O dinamarquês Lars von Trier continua fiel a si próprio, inventariando, reconvertendo e relançando as representações da vida moral dos pobres humanos: "A Casa de Jack" pode suscitar entusiasmo ou relutância, mas nunca indiferença.

joao lopes
6 Jan 2019 0:40
Quer queiramos, quer não, a trajectória criativa de Lars von Trier, pontuada por sucessos e polémicas, não admite indiferença. Por isso mesmo, o ano passado, em Cannes, a passagem de "The House that Jack Built" (extra-competição) não podia deixar de desencadear uma expectativa muito concreta: iria o cineasta dinamarquês confirmar o seu passado de "provocador"?
Digamos, para simplificar, que a provocação é, continua a ser, a postura criativa de Lars von Trier. No sentido mais puro, entenda-se. Podemos sentir-nos tocados pelos seus filmes ou, pelo contrário, repelir as suas convulsões, mas ele não pára de questionar a nossa condição de espectadores: que mundo vemos no mundo que o cinema nos devolve?
"The House that Jack Built", agora lançado entre nós como "A Casa de Jack", é o retrato de um serial killer (Matt Dillon) que não se parece com nenhum "thriller" que já tenha sido feito sobre personagens, de alguma maneira, semelhantes. Através da sucessão de cadáveres que a figura central colecciona (literalmente…), vamos sendo impelidos para os meandros de uma muito cruel fábula moral — afinal, perante a abrangência do Mal, onde está o Bem?
O programa dramático do filme consiste menos em "explicar" a personagem central e mais em inscrever o seu percurso numa singularíssima trajectória — trata-se de ligar a experiência presente do espectador, através do filme, a todo um imaginário do Bem e do Mal que, afinal, nos acompanha há séculos.
Num dos seus momentos finais, absolutamente espantoso, "A Casa de Jack" aproxima mesmo a viagem de Jack e Verge (Bruno Ganz), sua consciência-fantasma, de uma lendária representação de Dante e Virgílio nas imediações do Inferno — "A Barca de Dante" ou "Dante e Virgílio nos Infernos", pintura de 1822, conservada no Museu do Louvre (veja-se aqui em baixo e compare-se com o fotograma do filme que encima este texto).

Reencontramos, assim, o melhor de Lars von Trier. Ou seja: a sua capacidade de construir uma visão do mundo que vive tanto da mais depurada crueza realista (os crimes de Jack são encenados de forma contundente) como do apelo a uma memória mitológica que recebemos como um misto de libertação e assombramento — cinema de fantasmas, fantasmas tão vivos como nós.
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