joao lopes
12 Abr 2019 0:38
Um hábito banal, banalmente preguiçoso, leva-nos a pensar que quando um filme se apresenta como uma "reconstituição histórica", então o seu saldo dramático deve coincidir com a descoberta de um sentido para a própria história. E se a história resistir a ser representada? No limite, e se a história não fizer sentido?
Trata-se, então, de saber como é que as coisas significam dentro da história, abrindo o filme à pluralidade dos sentidos, às ambivalências, porventura aos silêncios sem resposta. "Anoitecer" é um filme assim — uma viagem que fazemos na companhia de uma mulher, Írisz Leiter, que tenta recuperar um posto de trabalho na sofisticada loja de chapéus de Budapeste que já pertenceu à sua família.
É a saga de uma personagem à procura de um lugar que já foi seu e que, em boa verdade, talvez já não exista. E é também, num cruzamento pleno de sugestões e inquietações, um fresco (histórico, precisamente) sobre uma cidade efervescente, em pleno ano de 1913, coleccionando sinais premonitórios daquilo que, como sabemos, seria a tragédia da Primeira Guerra Mundial.
Estamos perante o trabalho de um cineasta, o húngaro László Nemes, cuja ousadia já conhecíamos: a sua primeira longa-metragem, "O Filho de Saul" (distinguida com o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2015), era o perturbante retrato da vida e da morte no interior de um campo de concentração montado pelos nazis. Agora, com "Anoitecer", Nemes confirma a sua invulgar vocação para nos fazer sentir as convulsões da história e o lugar instável do individual no turbilhão das forças colectivas.
Tudo isso envolve um método de encenação, tão detalhado quanto obsessivo, em que a câmara se "cola" a Írisz, num efeito-reportagem que se articula com a prodigiosa composição de Juli Jakab. Ela é alguém capaz de sustentar a pressão constante da câmara, desnudando a sua personagem, num efeito em que a clareza das emoções, paradoxalmente ou não, nunca é estranha aos enigmas da identidade — simplificando, "Anoitecer" é, desde já, no mercado português, um dos momentos altos de 2019.