joao lopes
25 Nov 2018 1:25
Ter ou não ter memória, eis a questão… Por muitas e variadas razões, muito cinema contemporâneo vive no interior de um sistema de relações com o passado, inventariando sinais de épocas e filmes mais ou menos "antigos". Há quem o faça na mera procura de tiques revivalistas, promovendo uma arte copista e formalista, sem qualquer projecto estético. Mas há também quem saiba fazê-lo procurando (re)valorizar a própria experiência cinéfila.
O italiano Luca Guadagnino é um desses cineastas capaz de ter memória e arriscar pelos caminhos labirínticos da experimentação narrativa. Afinal de contas, o seu consagrado "Chama-me pelo Teu Nome" (2017) não era exactamente um panfleto sexual, antes uma deslumbrante revisitação das mais clássicas matrizes melodramáticas. Do mesmo modo, poderemos dizer que o seu "Suspiria" está muito longe de ser uma banal imitação revivalista do "Suspiria" de Dario Argento, um objecto de culto lançado em 1977.
Mantém-se o pretexto de partida. A saber: uma jovem americana chega à Alemanha para frequentar uma escola de bailado… No filme original, era Jessica Harper a intérprete principal (agora também presente num pequeno, mas fundamental, papel). Guadagnino escolheu Dakota Johnson para interpretar a sua Susie Bannion e o menos que se pode dizer é que já era tempo de ela se libertar das vulgaridades de "50 Sombras de Grey".
Simplificando, importa dizer que se mantém também a vertente assombrada da história original: a escola é um espaço oculto de bruxaria, com Tilda Swinton, fiel de Guadagnino (recordemo-la em "Eu Sou o Amor", 2009), a assumir os traços, os gestos e a agressividade da inquietante Madame Blanc… Dir-se-ia uma derivação expressionista, de tal modo a herança de "O Gabinete do Dr. Caligari" (1920), de Robert Wiene, perpassa por aqui, tal como já passava pelo filme de Argento — eis uma breve memória.
Com uma nuance que é fundamental sublinhar: Guadagnino não é um cineasta de citações, antes um explorador de cenários que se deslocam no tempo, por assim dizer, pondo à prova a verdade simbólica do próprio acontecimento cinematográfico. Dito de outro modo: através do artifício teatralizado de "Suspiria" emergem os sinais históricos da Alemanha da década de 1970, marcada por diversos actos terroristas — e também pela presença perturbante das memórias da Segunda Guerra Mundial, do nazismo e do Holocausto.
Daí o carácter selvagem, porventura inclassificável, do labor de Guadagnino. Há nele essa pulsão pós-moderna que o leva a celebrar as heranças mais diversas, violentando-as formalmente até à mais completa abstracção (aqui, singularmente reforçada pela escolha de uma paleta de tons frios e invernosos, bem diferente das cores primárias de Argento). Ao mesmo tempo, tudo acontece numa dimensão a que apetece chamar fisiológica, através das convulsões dos corpos e da violência latente nas linhas cruzadas dos olhares — veja-se, escutando, o movimento interior da montagem na cena da primeira dança de Susie.
No limite, "Suspiria" nem sequer encaixa nas matrizes do cinema de terror que lhe servem de inspiração. Este é um filme incrustado neste nosso tempo de realidades virtuais, delas se demarcando através da metódica celebração de uma sensualidade que, sendo corporal, é também indissociavelmente espiritual.
Espiritual? A palavra não está na moda, mas pode ajudar-nos a sugerir esse misto de crueza material e transcendência poética que contamina todos os instantes de "Suspiria". E se a direcção fotográfica do tailandês Sayombhu Mukdeeprom se revela decisiva na instalação de tal ambivalência, a música de Thom Yorke, em nada estranha ao seu trabalho nos Radiohead, possui qualquer coisa de paradoxalmente orgânico, funcionando como sublinhado emocional e elemento de distanciação.
Num certo sentido, dir-se-ia que estamos perante um palco em que acontece uma performance operática, frontal, frontalmente artificiosa, humana e sobre-humana — e podemos apostar que Guadagnino não levará a mal o impulso retórico inerente a tal descrição.
* "Suspirium", de Thom Yorke — banda sonora de "Suspiria".