joao lopes
22 Set 2017 21:10
O impacto internacional de um filme como "A Fábrica de Nada" é, de facto, impressionante. E repare-se: reconhecê-lo não é, de modo algum, definir tal impacto como um fim em si mesmo. Trata-se tão só de reconhecer ao filme o poder invulgar de lidar com personagens e lugares visceralmente portugueses, conseguindo por essa via um apelo universal invulgar (em mercados que vão da Europa à América Latina, passando pela China).
Como tem sido amplamente divulgado, este filme realizado por Pedro Pinho tem como ponto de partida uma ideia de Jorge Silva Melo, por sua vez enraizada na sua encenação da peça "A Fábrica de Nada", de Judith Herzberg: os operários de uma fábrica vêem os respectivos patrões a retirar máquinas e matérias primas das instalações, desse modo pressentindo a vaga de despedimentos que está a ser preparada — ocupando a fábrica, são levados a perguntar até que ponto o "nada" a que estão compelidos se pode transformar em "alguma coisa" que envolva e enriqueça os seus destinos.
Dir-se-ia que estamos perante um filme "militante", à maneira dos anos 70, enraizado na herança ideológica e simbólica de Maio 68. Até certo ponto, o paralelismo justifica-se: a utilização do som directo e, sobretudo, o granulado da película de 16mm (magnífica direcção fotográfica de Vasco Viana) remetem-nos para um tempo em a urgência do social apelava à utilização dos chamados formatos "ligeiros".
Seja como for, importa acrescentar que o filme nunca se reduz a um registo único de "testemunho" social. Claro que, no arranque, a sua dimensão quase documental se revela vital para conhecermos aquele universo assombrado pelos fantasmas do desemprego. O certo é que "A Fábrica de Nada" vai colando (a noção pictórica de colagem pode ser uma sugestiva associação) situações e cenas em que o realismo mais estrito se dá bem com o apelo surreal — e até com os regras do cinema musical.
Estamos perante um genuíno acontecimento cinematográfico, original e envolvente. E tanto mais quanto contemplamos, aqui, o desmembrar da ideia de que o cinema português nem sempre sabe inscrever nas suas ficções o país que somos. Bem pelo contrário: "A Fábrica de Nada" é um objecto do presente e para o presente, socialmente inteligente, politicamente subtil, cinematograficamente pensado.