Marion Cotillard filmada pelos Dardenne: um cinema da mais pura emoção


joao lopes
21 Nov 2014 22:46

Há cineastas que produzem no espectador uma paradoxal sensação de revelação e solidão — por um lado, entramos nos seus filmes como se a partir do mais discreto incidente do quotidiano pudéssemos (e podemos, de facto!) vislumbrar uma imensa paisagem social e emocional; por outro lado, a precisão austera dos seus gestos deixa-nos a sensação (afinal, justificada) de que a sua visão se desenvolve como se não houvesse outros filmes e outras lógicas à sua volta.

Luc e Jean-Pierre Dardenne — os fabulosos irmãos belgas que assinaram coisas tão prodigiosas como "Rosetta" (1999), "A Criança" (2005) ou "O Miúdo da Bicicleta" (2011), vencedores da Palma de Ouro de Cannes com os dois primeiros — são cineastas dessa especialíssima dimensão.
O seu novo filme, "Dois Dias, uma Noite", constitui uma proeza tanto mais contagiante quanto se centra na composição de uma actriz que, em princípio (e por princípio), associamos a uma marca dominadora de estrela: a genial Marion Cotillard.
"Dois Dias, uma Noite" é um daqueles filmes que se pode resumir através de uma sinopse tão linear quanto desconcertante. Esta é, de facto, a história de uma mulher, Sandra (Cotillard), que parte para uma dramática odisseia (dois dias e uma noite): a de convencer os seus colegas de empresa a não aceitar os bónus prometidos pela administração, uma vez que, a consumar-se tal hipótese, ela será despedida…
Cinema social? A expressão surge, inevitavelmente, e estou em crer que os próprios Dardenne não a rejeitarão em absoluto. Em todo o caso, convém separar as águas e lembrar que nada do que aqui acontece tem a ver com o determinismo (telenovelesco) que confunde a dimensão social das histórias que se contam com o facto de as personagens viverem experiências que podem ser "extrapoladas" para uma qualquer dimensão "colectiva" ou "simbólica"…
Ora, "Dois Dias, uma Noite" (tal como, em boa verdade, todo o cinema dos Dardenne) é um filme que, quanto mais sinaliza a actualidade dos seus temas — a começar, neste caso, pelas convulsões do emprego e do desemprego —, mais nos envolve na singularidade dos destinos das suas personagens principais. Dito de outro modo: viajamos pela história de Sandra descobrindo as emoções mais delicadas e secretas de uma vivência única e irredutível.
Há outra maneira de dizer isto: os Dardenne são autores de um universo intransigentemente realista. Mais do que isso: sabem que a seriedade do realismo não nasce das suas "mensagens" mais ou menos apologéticas, mas sim da capacidade de colagem à especifidade dos acontecimentos.
Daí que "Dois Dias, uma Noite" quase pareça a reportagem resultante de uma câmara ansiosa que segue a admirável generosidade de Cotillard — o certo é que este é um cinema de inexcedível luminosidade, precisão e rigor. Numa palavra: emoção.

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