joao lopes
28 Jul 2018 20:52
Releio as linhas que escrevi [ver link aqui ao lado] quando "Happy End", de Michael Haneke, passou em Cannes, na secção competitiva de 2017. E, embora reconhecendo que se tratava de um objecto não susceptível de gerar consensos (ainda bem…), confesso que não esperaria que sobre ele se abatesse um tão grande silêncio — para não dizer indiferença.
De tal modo que "Happy End" se tornou um objecto ausente de todos os balanços europeus de 2017, como se o facto de pensar a Europa para além de lugares-comuns ideológicos ou banalidades dramáticas justificasse uma espécie de punição simbólica… Enfim, digamos apenas que o filme chega ao mercado português mais de um ano depois da sua revelação em Cannes e que isso não o impede de ser um invulgar acontecimento.
Que Europa? Pois bem, uma entidade que emerge da perturbação que se instala numa família do norte de França face os refugiados que foram acolhidos na região de Calais (no campo, entretanto desmantelado, que ficou conhecido como a ‘Selva’). O que Haneke filma não é o confronto, ainda menos a comunicação, entre os dois universos, antes a sua coexistência num presente carregado de contradições e interrogações.
Deparamos, afinal, com a mesma precisão realista de títulos anteriores de Haneke, em particular aqueles que lhe valeram duas Palmas de Ouro em Cannes: "O Laço Branco" (2009) e "Amor" (2012). O realismo, entenda-se, não é a acumulação de sinais superficiais, à maneira da mais rotineira informação televisiva — é, isso sim, um trabalho intenso e obsessivo sobre os elementos do quotidiano que dizem mais do que as suas aparências.
Como sempre, isso é conseguido através de um elaborado e complexo trabalho com os actores, também eles superando os códigos comuns de representação "psicológica". Destaquemos Isabelle Huppert, Jean-Louis Trintignant, Toby Jones e Mathieu Kassovitz. E sublinhemos, em particular, a presença radical de Fantine Harduin — no cinema de Haneke, também as crianças não são estereótipos.